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Multiplicar o pão

Cíntia Oliveira, especial para o Estadão

São Paulo

11/04/2021 16h00

Todas as manhãs, o chef e pesquisador Ricardo Frugoli abastece uma Kombi com pães, bolinhos, chocolate quente e o que mais tenha recebido por meio de doações e percorre, junto com uma equipe de voluntários, pontos da região central da cidade, como a Praça Princesa Isabel, a estação Armênia do metrô e o viaduto Santa Ifigênia, emSão Paulo, para garantir o café da manhã (e, muitas vezes, a única refeição do dia) de centenas de moradores de rua. Nem sempre, consegue atender a todos.

"Cada dia que passa, a fila de pessoas em busca de comida só aumenta. Hoje mesmo, não tivemos o suficiente e fomos obrigados a reduzir o número de paradas de acolhimento", lamenta ele, que comanda desde outubro do ano passado o projeto Pão do Povo da Rua, que funciona dentro da Pastoral do Povo da Rua, coordenada pelo Padre Júlio Lancellotti.

O aumento constante na procura por comida, seja em forma de pães, marmitas ou cestas básicas, notado por tantos voluntários que assistem de perto à triste realidade das pessoas em situação de vulnerabilidade social, pode ser traduzida em números. No início desta semana, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) divulgou o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, que contém dados alarmantes.

Segundo o estudo, atualmente a fome é a realidade de 19 milhões de brasileiros e em 55,2% dos domicílios se convive com a insegurança alimentar, ou seja, seus habitantes reduzem a quantidade de alimentos por falta de recursos e chegam a pular refeições. "A pandemia só fez deixar a desigualdade ainda mais explícita. Quem sofre é o lado mais fraco, que fica com o estômago vazio", diz o Padre Lancellotti, que há três décadas se dedica ao trabalho social com moradores de rua.

Sem dúvida, a pandemia evidenciou o problema da fome e da insegurança alimentar. Quando a quarentena teve início, em março do ano passado, Frugoli se isolou em seu apartamento na região central da capital paulista. Ele, que saía apenas para ir ao supermercado, começou a notar pelo caminho um aumento considerável no número de pessoas na rua pela região. "Teve um dia que saí para jogar o lixo e percebi que havia pessoas esperando os sacos, à procura de comida. Fiquei em choque", lembra.

Dali em diante, ele e seu marido, Wesley Vidal, começaram a fazer marmitas para distribuir aos mais necessitados. Graças a doações, conseguiram fazer cerca de 20 mil refeições em sete meses. Porém, com o tempo, o seu fogão e geladeira não aguentaram o tranco e tiveram que interromper o projeto. Até que, certo dia, Frugoli recebeu um telefonema de um amigo oferecendo uma bancada, uma fermentadora e um freezer como doação. "Com isso dava para montar uma padaria, pensei. O único problema é que eu não tinha um espaço", lembra. Foi então que ele entrou em contato com o Padre Júlio Lancellotti, que cedeu um lugar na Pastoral do Povo da Rua para a massaria social.

Receita de solidariedade. Desenvolvido especialmente para o projeto pela padeira Adriana Aranha, o pão de textura macia (porque boa parte dos moradores têm os dentes comprometidos) e sabor adocicado é feito a partir de uma mistura de farinhas de trigo, açúcar mascavo, fermento biológico seco e chocolate em pó. "Eu pedi para ela um pão saboroso, que pudesse ser comido puro, sem nenhum complemento", explica Frugoli.

Além da receita batizada com o nome do projeto, a broa de milho e o pão assado com manteiga formam as 2.500 unidades produzidas diariamente. No mesmo espaço, são feitos cerca de 700 bolinhos, à base de banana, milho, cenoura ou o que tiver disponível no dia. E a produção é realizada por 19 aprendizes em situação de vulnerabilidade social. "Eu tenho desde uma mulher trans até um homem na faixa dos 50 anos que perdeu o emprego de chapeiro no início da pandemia, não conseguiu se recolocar por causa da idade e, hoje, está vivendo em um albergue", conta Frugoli.

Atualmente, o projeto sobrevive de doações, que pagam desde os salários dos aprendizes até a compra dos insumos para a produção. No entanto, Frugoli sonha em repartir o pão com ainda mais gente. "Queria conseguir um patrocínio para bancar a compra de mais equipamentos, que me permitissem multiplicar a produção e treinar ainda mais essas pessoas, que o mercado de trabalho rejeita, mas são mão de obra de primeira qualidade". E mesmo com o trabalho diário no projeto, Frugoli ainda arruma tempo para preparar duas marmitas, todos os dias, e as deixa perto de sua casa, para quem tiver fome passar e pegar. "Está longe de ser a solução, mas ajuda a minimizar os efeitos dessa crise sanitária tão cruel que estamos vivendo."

Comida para quem precisa

À primeira vista, o ato de inaugurar um restaurante em contexto de pandemia parece loucura, mas o Altruísta Osteria & Enoteca surgiu com o propósito de gerar recursos para contribuir com diversos projetos sociais. "Queremos inspirar outros restaurantes a fazer o mesmo", conta o chef Daniel Oliva, do restaurante italiano aberto em agosto do ano passado, nos Jardins. Na última terça-feira de cada mês, por exemplo, metade do faturamento do restaurante é destinado a algum projeto social que atue na capacitação profissional de pessoas em situação de rua. Além disso, Oliva mobiliza a sua equipe para a produção de marmitas. Em abril, a meta é doar três mil refeições para a ONG Missão Cena, que trabalha na região da Cracolândia. "O chef precisa pensar na comunidade à sua volta, além de ensinar como as pessoas podem aproveitar os alimentos em sua totalidade", explica ele, que é neto de agricultores de Parelheiros, bairro do extremo sul de São Paulo.

Uma das causas do aumento da fome está diretamente relacionado ao desemprego, que assola cerca de 14,3 milhões de brasileiros, de acordo com pesquisa do IBGE. "Sem o apoio de políticas públicas mais consistentes, o mercado não será capaz de gerar novos empregos tão cedo. Uma das saídas está no empreendedorismo social", afirma o mestre sorveteiro Francisco Sant’Ana, da Escola Sorvete.

Em parceria com a UNAS (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região), ele deve inaugurar em breve, dentro da comunidade, a cozinha da OSH (Oficina de Sorvete de Heliópolis). O objetivo é capacitar cerca de 100 moradores da região, que vão produzir picolés para a marca e comercializá-los em diversos pontos da capital paulista. "O nosso objetivo também é buscar parcerias para realizar oficinas de bolo e de sobremesas para que mulheres da comunidade possam gerar renda nesse momento de crise", explica Sant’Ana.

No entanto, a fome não pode esperar. Diversas ações de produção de marmitas seguem a todo vapor na capital paulista. Uma delas é a ação social O Amor Agradece, capitaneada pela produtora cultural Rute Corrêa. O projeto começou em 2018, quando ela e amigos passaram a se reunir uma vez por semana para preparar 150 refeições destinadas a pessoas em situação de rua. Com a pandemia, não houve possibilidade de seguir com o mesmo formato, mas uma amiga de Rute teve a ideia de cada um cozinhar em sua própria casa. "Cada um prepara a quantidade de comida que cabe na própria panela. Tem gente que faz cinco, 30 e até 200 refeições", conta.

Atualmente, são cerca de 90 voluntários (a maior parte, mulheres), que se revezam para preparar cerca de 2.500 marmitas por semana. Entre elas está Marisa Furtado, que no fim do ano passado fechou a sua escola de culinária, Madame Aubergine, e hoje atua como consultora em projetos de mentoria e inovação na área da alimentação. Por incentivo de seu filho Tomás, a cada três semanas eles se unem para preparar cerca de 45 refeições.

"Essa pandemia nos mostrou que somos dependentes uns dos outros e projetos assim mostram o poder da mobilização", diz Marisa. Ela costuma preparar refeições coloridas e apetitosas, como frango ensopado com polenta, arroz e legumes. "São os meus sábados mais felizes", conta. O destino das refeições, que são distribuídas tanto por voluntários como por motoristas de aplicativo, pagos com dinheiro de doações, são as ruas, comunidades como Jardim Robru, no extremo leste de São Paulo, além de ocupações. "O mais importante é a comida chegar para quem tem fome", conta Rute.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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