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"Quando a sociedade legitima a misoginia, a violência aumenta": advogada alemã busca há 25 anos justiça para mulheres

25/11/2020 15h07

Nesta quarta (25), Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher, a RFI conversou com a advogada e autora alemã Christina Clemm, que há quase 25 anos ajuda a colocar criminosos no banco dos réus na Alemanha, autores de crimes contra as mulheres. E alerta: o importante é não ficar sozinha.

Cristiane Ramalho, correspondente da RFI em Berlim

A advogada alemã Christina Clemm, de 53 anos, circula por tribunais da Alemanha há quase 25 anos. Uma vivência que ela transformou no livro  AktenEinsicht - Geschichten von Frauen und Gewalt (Acesso aos Arquivos - Histórias de Mulheres e Violência, em tradução livre), lançado em março deste ano. Nele, histórias reais são contadas em forma de romance.

Os casos revelam o difícil caminho que as mulheres enfrentam para punir seus agressores na Alemanha, onde - assim como no Brasil - a culpa, muitas vezes, parece ser da própria vítima.

Ela revela ainda histórias de preconceito nos tribunais que fazem lembrar o recente caso da influenciadora digital Mariana Ferrer, humilhada durante uma audiência virtual no Brasil. E afirma: "O juiz tem a prerrogativa de cuidar para que cada um seja tratado com respeito".

Christina lembra que a Alemanha avançou muito com a reforma da Legislação Penal Sexual, em 2016. Hoje, as mulheres não precisam mais provar que resistiram a um ato de violência sexual: basta um 'não' para que ele seja considerado estupro.

Ela cita ainda a vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio, em 2018, e diz que "o clima para mulheres, feministas, e para a luta pela igualdade de direitos se deteriorou totalmente no Brasil".

Nessa entrevista à RFI, a advogada fala também sobre o impacto da pandemia no aumento da violência contra mulheres - fenômeno que observa de perto em seu escritório, em Berlim.

RFI: Por que tantas mulheres não conseguem terminar um relacionamento abusivo, em que são expostas à violência sexual e física?

Acho que a pergunta está errada. Primeiro, é preciso perguntar por que tantos homens não conseguem deixar a violência de lado. Mas há realmente muitos motivos que levam as mulheres a continuarem nessa situação. Um deles é a falta de perspectiva. Com freqüência, elas são dependentes financeiramente, não sabem se vão encontrar lugar na creche ou na escola para os filhos, nem se a ajuda social será suficiente. Além disso, o momento da separação é, muitas vezes, uma situação de alto risco. Também aí é preciso proteção e planejamento. Na maioria das vezes, crimes cometidos por parceiros ou ex-parceiros acontecem no momento da separação. E muitas calculam que é perigoso demais fugir. E é comum haver tanta violência psíquica que a mulher, no final, quase não tem mais autoconfiança. Elas têm o sentimento de que a culpa é delas, e quase não conseguem falar sobre isso.

É um processo por vezes demorado, então?

A maioria não faz isso da primeira vez. Em geral, é assim: começa com um primeiro espancamento, então o criminoso se desculpa, faz promessas. Então, elas têm esperança de que tudo vai melhorar. Mas aí, em algum momento, vem um segundo ataque, e por aí vai. Até que, em algum ponto, se torna incrivelmente difícil falar sobre isso.

"O clima nas ruas está muito agressivo"

A violência doméstica contra as mulheres se agravou durante a pandemia?

Existem números que indicam que a situação piorou consideravelmente mundo afora. Ainda não há dados seguros sobre isso na Alemanha. Mas o serviço de emergência por telefone do governo federal, que oferece apoio 24h em vários idiomas, mostra que os números aumentaram significativamente. Também há estudos que apontam um aumento de 30% na Baviera. Diante da insegurança generalizada, as mulheres parecem resistir. Além de não saber se haverá segurança nos abrigos, em termos de proteção sanitária, alternativas como casas de parentes ou amigos nem sempre estão disponíveis. Com isso, muitas só estão tentando sobreviver à pandemia.

Você percebeu esse impacto também no seu próprio escritório?

Sim, tenho recebido uma quantidade imensa de solicitações, e isso inclui muitas queixas de violência doméstica. Além disso, o clima nas ruas está muito agressivo, com confrontações no espaço público, por exemplo, em torno do uso de máscaras. Especialmente no transporte público, no metrô, onde tenho muitos casos de pessoas que pedem para que o outro coloque a máscara, e são agredidas ou cuspidas. Homens e mulheres. A gente presume que essa agressividade também aumentou nas famílias, diante de tantos fatores de preocupação, como trabalho e saúde, e pouca chance de sair de casa. E quando há tanto conflito, é de se temer também a violência contra mulheres - assim como contra crianças.

Até os anos 1990, o estupro no casamento não era considerado um crime na Alemanha. Você participou da comissão de especialistas que participou da reforma que modernizou a legislação do Direito Penal Sexual, em 2016. Que resultados concretos ela trouxe?

Agora, crimes que não eram punidos antes na Alemanha, como, por exemplo, um delito sexual - que antes só seria assim considerado se fosse usada resistência - frente à violência ou ameaça - agora é suficiente reconhecer o desejo contrário, não é preciso que haja violência. Basta que a mulher diga: 'eu não quero'. E a maioria das mulheres diz. Então, não é preciso se defender, não é preciso ter violência, para ser punível. Muitas vezes, as mulheres não ousam se defender, ou porque foi um choque, ou porque o ataque foi totalmente inesperado. Antes, se uma mulher estava no metrô, e de repente alguém a atacava por trás, entre as pernas, isso não era punível porque não havia violência física ou resistência, já que a pessoa não percebia a tempo. Esses ataques agora são puníveis, o que inclui o próprio estupro, seguindo a ideia do movimento 'não é não'. Isso foi um avanço.

"A dignidade humana tem que ser sempre, obviamente, respeitada"

No Brasil, um caso recente de uma moça que foi humilhada diante de um juiz, pelo advogado de defesa do acusado de estuprá-la, provocou uma onda de repúdio. No seu livro, você relata casos semelhantes. Um juiz não teria a obrigação de impedir esse tipo de desrespeito à vítima?

A dignidade humana tem que ser sempre, obviamente, respeitada. E existem regras que dizem que o interesse das vítimas deve ser levado em consideração. Mas, em princípio, todas as perguntas devem ser permitidas no Tribunal, sob a justificativa de que elas são necessárias para se verificar a credibilidade do depoimento. O que significa que podem também ser feitas perguntas, por exemplo, sobre o passado sexual. Mas são perguntas extremamente discriminatórias do ponto de vista dos afetados.

Mas existem limites, naturalmente...

Existem limites, mas a jurisprudência é muito abrangente, porque tudo é considerado legal na busca da verdade, e então é tudo uma questão de interpretação. Por isso, entendo ser urgente que o Judiciário seja mais bem treinado e especializado para entender o que não tem absolutamente nada a ver com o ato - ou com a a credibilidade -, assim como acontece com outros delitos. Para dar um exemplo: para nós, tanto faz se a vítima de um roubo já foi vítima de um outro roubo, ou se teve alguma dificuldade no passado. Sobretudo nas ofensas sexuais, o passado é sempre muito questionado, e isso é permitido pelos juízes.

E, na sua opinião, isso está correto?

Acho isso errado, claro. É preciso poder verificar a declaração, o princípio básico diz que ônus da prova cabe ao acusador. Mas, ao mesmo tempo, é preciso levar em consideração os interesses da testemunha. A gente deveria permitir muito menos perguntas. Esse controle é uma tarefa que cabe, naturalmente, ao juiz. Ele tem a prerrogativa de cuidar, durante o julgamento, para que ninguém seja retraumatizado, para que cada um seja tratado com respeito. E, claro, também é uma tarefa de quem representa a vítima impedir que sejam repetidos. O ideal é que todos os que atuam no tribunal ficassem atentos a isso.

Você já viu um juiz interromper esse tipo de humilhação?

Sim, com certeza. Ele tem que fazer isso. Da minha parte, se a situação for longe demais, se as testemunhas forem insultadas, eu peço ao juíz para interromper. Não posso proibir que a defesa faça perguntas, mas posso pedir ao juiz que as proíba. Ele é quem resolve se a pergunta extrapola a questão. E vai possivelmente proibir. Se o agressor praticou a violência, o estupro, não importa como ela reagiu.

"Um clima de misoginia faz com que as mulheres sofram mais violência"

O fato de lideranças políticas minimizarem a violência de gênero e a misoginia, numa legitimação do preconceito, pode elevar os riscos para as mulheres?

Em geral, o sexismo acaba resultando em mais violência. Quando uma sociedade legitima a violência física e sexual contra mulheres, e se comporta de forma sexista e misógina abertamente, então isso se instala. Um clima de misoginia faz com que as mulheres sofram mais violência. O contrário também é verdadeiro: onde a violência de gênero não é tolerada, a violência individual é bem menor. É assim no mundo inteiro. Sabemos que lideranças populistas de direita, ou de extrema-direita, costumam lidar com as sociedades de forma antifeminista e misógena. Também na Alemanha o movimento da extrema-direita se traduz em ódio às mulheres e às feministas, com ataques aos direitos reprodutivos. Não conheço o Brasil tão bem, mas pelo que eu escuto, é exatamente assim com Bolsonaro.

Pode-se dizer então que o governo de Jair Bolsonaro, no Brasil, agravou esse clima hostil contra as mulheres?

Eu diria que sim. O clima para mulheres, e para feministas, ou para a luta pela igualdade de direitos, se deteriorou totalmente no Brasil. Também é possível ver uma hostilidade em relação aos grupos LGBTQ+. Vale lembrar que a misoginia também tem um componente racista. Houve ainda o assassinato de ativistas políticas do movimento feminista - como Marielle Franco - ou queer, que correm um risco muito maior de serem atacadas, feridas ou mortas, ou de serem vítimas de violência digital.

O que você recomendaria para mulheres que são vítimas de violência doméstica?

Que eles tentem falar sobre isso com alguém. Pode ser um serviço de aconselhamento, uma amiga, uma conhecida, o médico. Para que possam pensar com muito cuidado quais os passos tomar. Nem todas as vítimas precisam entrar com uma queixa -  mas se for uma situação de risco agudo, então é importante chamar a polícia. Mas vale pensar numa estratégia, achar um caminho para sair dessa situação. Algumas demoram bastante, planejam tudo. Outras tomam a decisão de um dia para o outro. É sempre individual. O importante é não ficar sozinha.

Os números da violência contra mulheres na Alemanha ainda são bastante altos - e, segundo você, seriam ainda maiores, pois muitos não são notificados... Que iniciativas podem melhorar a situação das mulheres no país?

Há estudos mais antigos que apontam que uma em cada três mulheres sofre de violência física pelo menos uma vez na vida na Alemanha. São números incrivelmente altos. A estatística mais atual vem do Departamento Federal de Investigações, mas só com casos que foram denunciados - esses são os números que vêm à tona. Estimamos que eles sejam bem mais altos. Na Alemanha, precisamos de mais serviços de aconselhamento, e mais abrigos. E é preciso oferecer apartamentos, postos de trabalho, terapia, e mais prevenção e educação nas escolas e creches. Crianças que testemunham esse tipo de experiência em casa não recebem esclarecimentos, não têm espaço para falar sobre isso. Precisamos impedir essa estrutura de violência, e buscar uma sociedade com igualdade de direitos.

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