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Bolsonaro flerta com a irresponsabilidade fiscal ao se aproximar do Centrão

do UOL

30/09/2020 04h00

Não há qualquer dúvida que Bolsonaro está muito longe de ser um político liberal no sentido correto da palavra. Ao contrário, sempre teve um perfil conservador, com uma postura bastante corporativista e descomprometida com o ajuste das contas públicas. Qualquer um que tenha acompanhado sua carreira política sabe claramente isso.

A novidade, entretanto, é que quando se ocupa a cadeira de presidente da República, a possibilidade de responsabilização se eleva substancialmente. Não cumprir os limites contidos na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) pode implicar o impeachment do presidente, a exemplo do que ocorreu com Dilma Rousseff. Atualmente, há ainda o teto dos gastos, que limita o crescimento das despesas do governo à variação da inflação, durante 20 anos. As únicas exceções são aquelas relacionadas à saúde e educação, uma vez que, para essas áreas, o teto se transforma em piso. E o presidente sabe de tudo isso. Todas suas declarações caminham nesse sentido.

O problema é que "não se pode fazer um omelete sem quebrar os ovos". Antes da pandemia, as contas públicas já vinham se deteriorando rapidamente. Com a pandemia, o déficit deste ano e, consequentemente, a dívida pública subiram substancialmente. Em que pese o Banco Central ter reduzido a taxa Selic para 2% ao ano, os juros futuros têm se elevado para valores superiores a 8%, indicando que o mercado desconfia da capacidade do governo arcar com sua dívida no futuro. E isso também pode ser percebido com a redução do prazo de rolagem da dívida, que tem sido cada vez menor.

Nesta situação, o melhor que o governo poderia fazer seria se comprometer seriamente e de maneira crível com as reformas estruturais tão necessárias, reduzindo gastos ineficientes e criando um ambiente mais amigável para geração de renda. Neste pacote deveriam ser incluídos as reformas administrativas, tributária e um amplo plano de privatizações e de concessões. Esta combinação permitiria sinalizar que haveria redução dos gastos públicos correntes ao longo do tempo e melhora do ambiente de negócios para as empresas. Ademais, o Estado arrecadaria mais e obteria recursos adicionais, que poderiam ser utilizados para reduzir a dívida pública e, consequentemente, liberar recursos para investimentos em áreas prioritárias, inclusive para a execução de políticas assistenciais.

O grande problema é que, lembrando a fábula "O Escorpião e o Sapo" (O Escorpião e o Sapo), esta não é a natureza do nosso presidente. E isso já ficou provado quando ele boicotou sua própria reforma da Previdência, ou quando enviou ao Congresso uma reforma administrativa mal acabada, evitando se indispor com a categoria dos funcionários públicos, principalmente os militares. No mesmo sentido, ele já se manifestou contrário a várias privatizações, principalmente aquelas que poderiam arrecadar mais e permitir que os mercados se tornassem mais eficientes. No caso da reforma tributária, o seu comprometimento com a desoneração de igrejas já dá uma ideia do que se pode enfrentar.

Mas o pior ainda é ver sua reaproximação com o Centrão, distribuindo ministérios e cargos por toda a esplanada. Esse grupo, notoriamente formado por políticos de vários partidos sem qualquer comprometimento com a responsabilidade fiscal e princípios básicos de boa administração pública, tem como função objetiva apenas se perpetuar no governo. Aliás, muitos deles estiveram ao lado dos sucessivos governos petistas, mas abandonaram rapidamente a presidente Dilma Rousseff quando sua situação política se complicou.

Nesta segunda-feira, tivemos um bom exemplo do que ainda está por vir, com a divulgação das fontes de financiamento do programa a ser criado "Renda Cidadã", em substituição ao Bolsa Família. Sem discordar do mérito e muito menos da necessidade de termos um programa de assistência social para os mais pobres, o que estamos observando são políticos que, percebendo o efeito eleitoral, querem a qualquer custo criar mais um programa de gastos permanentes, sem refletir sobre os efeitos futuros. E, para isso, estão dispostos a tudo, inclusive colocar em prática uma nova pedalada fiscal, com o não pagamento de precatórios, ou mesmo deslocar recursos da educação do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) para tal, uma vez que esses recursos estão fora do teto de gastos. Aliás, é sintomática a frase dita em entrevista à CNN pelo relator do Renda Cidadã, Marcio Bittar (MDB-AC), que "se for calote, os estados já dão calote há muito tempo". Ou seja, para ele, o erro dos outros justifica os próprios.

A grande questão é que o efeito desta verdadeira irracionalidade econômica já se mostrou o pior possível. O mercado reagiu pessimamente, com a Bolsa de Valores caindo, e juros futuros e dólar subindo. O recado recebido foi o de que este governo está definitivamente flertando com a irresponsabilidade fiscal, tornando mais arriscado financiar a dívida pública e gerando uma expectativa de que o real continue a se depreciar. E isso não afeta só os investidores. Dólar mais elevado acaba tendo efeito sobre a inflação e juros mais altos, sobre investimento produtivo, custo de financiamento de imóveis, emprego, etc. Ou seja, afetará a todos nós, mas, principalmente, aos mais pobres.

Neste cenário - de deterioração das contas públicas e piora substancial da conjuntura econômica que se avizinha - resta saber se o Centrão continuará a ser o avalista do governo Bolsonaro ou fará como fez no governo Dilma, abandonando o barco no meio da tempestade perfeita. Meu sentimento, por tudo que já vivi quando trabalhei em Brasília, é que esse grupo tem um instinto de sobrevivência política inigualável e detecta com rara precisão quando o fim de outro político se aproxima.

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