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Homem Vitruviano, a resposta genial de Da Vinci a um enigma da Antiguidade para criar 'edifícios perfeitos'

27/09/2020 18h03

Da Vinci revelou as proporções geométricas perfeitas que governam todo o mundo natural em um diagrama que ficou desconhecido durante 300 anos.

Nosso mundo está cheio de diagramas, representações gráficas de tudo. Mas um diagrama em particular há séculos nos fascina e cativa. Foi desenhado na década de 1480 por um dos maiores talentos criativos da história e hoje está alinhavado no tecido de nossa cultura.

Estamos falando do Homem de Vitrúvio (ou Homem Vitruviano), obra do mestre renascentista Leonardo da Vinci.

Com ele, Da Vinci se propôs a capturar, por meio da ciência e da arte - que para ele eram uma coisa só - a perfeição do corpo humano.

Mas o desenho foi também uma resposta para um antigo problema arquitetônico sobre as proporções relativas de edifícios e homens.

A solução de Da Vinci, obsessivamente simétrica, aparentemente simples e de uma beleza extraordinária, oferecia uma visão única sobre o corpo humano como criação suprema de Deus, a expressão máxima do próprio Cosmos.

Nas palavras de Da Vinci, "O homem é o modelo do mundo."

O desafio

Como outros grandes artistas da época, Da Vinci se inspirou na descoberta, em 1414, de uma obra do arquiteto e engenheiro militar romano Marco Vitrúvio intitulada Da Arquitetura.

O livro continha um desafio a que Da Vinci não resistiu.

"Para que qualquer edifício seja belo", escrevera Vitrúvio, "deve ter simetria e proporções perfeitas, como as encontradas na natureza".

"E como o objeto mais perfeito da natureza é o homem, um edifício perfeito deve ter as proporções do corpo humano."

O desafio proposto por Vitrúvio era que se desenhasse a figura de um homem dentro de um círculo de forma que o centro desse círculo fosse o umbigo do homem. Os braços da figura deveriam estar estendidos e os dedos de suas mãos e pés deveriam tocar a circunferência.

Essa mesma figura deveria também se encaixar perfeitamente dentro de um quadrado.

O círculo e o quadrado

O círculo e o quadrado, figuras-chave para o pensamento arquitetônico de Vitrúvio, eram tidos, durante o período renascentista, como as formas mais perfeitas da natureza.

Contemporâneos de Da Vinci também tentaram resolver o famoso desafio.

Supondo que ambas as formas tinham de ter o mesmo centro, criaram diagramas mal resolvidos, onde sacrificavam a figura humana em prol da geometria, ou sacrificavam a geometria para acomodar o homem.

Mas a capacidade de inovar e pensar lateralmente deu a Da Vinci a resposta para o problema.

"Seria natural pensarmos que, se temos um círculo e um quadrado, simplesmente usamos o mesmo centro", disse à BBC News Mundo o professor da Universidade de Oxford Martin Kemp, uma sumidade mundial em Leonardo da Vinci.

"Mas o que Da Vinci pensou foi, temos de ter um círculo e um quadrado, mas não precisamos presumir que tenham o mesmo centro."

"Ele estabeleceu o umbigo como o centro do círculo. E logo percebeu que precisava deslizar o quadrado um pouco para baixo. Essa foi a chave, um movimento que permitiu que tudo funcionasse de uma maneira particular."

O deslocamento dos centros do círculo e do quadrado foi um toque magistral que harmonizou a relação entre o homem e a geometria.

Ainda que o quadrado não tivesse o mesmo centro que o círculo, nem se encaixasse com exatidão nele, da própria assimetria resultou a perfeição.

Assim, as mãos também tocavam os lados do quadrado, os pés descansavam sobre a base de ambas as figuras geométricas e as proporções continuavam sendo as do ser humano ideal.

Proporções perfeitas

A resposta de Da Vinci ao desafio de Vitrúvio ficou desenhado com tinta marrom em uma página onde, além do diagrama, havia anotações descrevendo as proporções do corpo.

Nos primeiros dois blocos de texto ele anotou as medidas do corpo ideal segundo Vitrúvio. Além disso, especificou que:

Se abres as pernas o suficiente para diminuir a altura em 1/14 e se estendes e levantas os braços até que teus dedos médios alcancem o nível da parte superior de tua cabeça, deves saber que o centro das extremidades estendidas estará no umbigo e o espaço entre as pernas será um triângulo equilátero. O comprimento dos braços estendidos de um homem é igual à sua altura.

No segundo bloco de texto, Da Vinci descreveu o corpo modelo em frações, com frases como:

Das raízes do cabelo até a parte inferior do queixo está a décima parte da altura de um homem.

Essas proporções perfeitas são a base de duas premissas centrais ao diagrama:

  • O corpo do homem está proporcionado de acordo com a geometria e a matemática
  • Essas proporções, aplicadas à arquitetura, produzirão edifícios perfeitos.

E tudo isso, ao que parece, Da Vinci fez para si mesmo.

Seu Homem de Vitrúvio, essa união perfeita entre arte e ciência, permaneceu desconhecido durante 300 anos.

"Para Da Vinci, (o diagrama) era uma coisa perfeitamente bela, pois cumpria perfeitamente sua função", disse Martin Kemp. Na visão do artista, a figura entrelaçava "forma, função e beleza".

"E do seu ponto de vista, essa perfeição absoluta de tudo o que existe, sua beleza matemática e mecânica, isso era o que seres humanos deveriam buscar ao construírem suas próprias casas", disse o especialista à BBC.

A prova

Mais de cinco séculos depois de Da Vinci ter desenhado o que ele considerava ser o corpo masculino de proporções perfeitas, um grupo de cientistas americanos escaneou os corpos de cerca de 64 mil pessoas com idades entre 17 e 21 anos para saber quão próximo o ideal renascentista estava da realidade moderna.

A equipe, liderada por Diana Thomas, matemática da United States Military Academy em West Point, no Estado de Nova York, concluiu que "exceto pelo comprimento dos braços e das coxas, as diferenças entre as proporções de homens medidos pelo escaneador corporal e as do Homem de Vitrúvio eram de até 10% (em média)".

Os homens estudados tinham comprimento de braço em torno de 20% maior. No caso da coxa, o comprimento ficou cerca de 29% maior do que no desenho de Da Vinci, detalhou a especialista.

Isso significa que, quando inseridos no círculo e no quadrado desenhado por Da Vinci, os dedos do homem moderno excedem os limites.

Apesar dessas diferenças, o estudo, publicado em junho na revista científica Journal of the American Medical Association, encontrou "grande proximidade" entre a imagem do gênio do Renascimento e aquelas criadas em 2020 com base em análises científicas muito mais complexas.

"Apesar das diferentes amostras e métodos de cálculo, o corpo humano ideal de Leonardo da Vinci e as proporções obtidas com as medições contemporâneas foram similares", ressaltou Thomas.

O fantasma do homem

Passemos ao aspecto arquitetônico do diagrama.

Para Vitrúvio, o templo era o edifício supremo, já que estava perto de Deus. O piso tinha a forma de um quadrado, a cúpula tinha a forma de um círculo.

"Se você entende a geometria do corpo humano, quando você projeta um pequeno templo circular, o fantasma do 'Homem de Vitrûvio' está por trás dele", diz Martin Kemp, de Oxford.

Esses princípios-chave - forma, função e beleza - que Da Vinci aplicou ao seu desenho também estão no coração de Vitrúvio.

Suas ideias foram famosamente colocadas em prática pelo arquiteto renascentista Andrea Palladio. A Igreja do Redentor, em Veneza, é um grande exemplo.

Nela, pode-se ver as proporções sobre as quais Vitrúvio escreveu em seu livro.

A largura da entrada, por exemplo, equivale à metade de sua altura. O triângulo menor tem aproximadamente um terço do tamanho do triângulo maior.

Para Vitrúvio, essas proporções encontravam-se no corpo humano e isso era o que Da Vinci estava explorando ao desenhar o Homem de Vitrúvio.

Só que, para o gênio renascentista, as proporções harmônicas iam além do corpo e da arquitetura.

A proporção - escreveu Da Vinci - não se encontra apenas em números e medidas, mas também nos sons, paisagens, nos tempos e nos lugares.

Anatomia filosófica

Leonardo da Vinci tinha verdadeira obsessão em compreender a anatomia humana e a perfeição anatômica do Homem de Vitrúvio é fruto desses conhecimentos.

"Da Vinci foi a primeira pessoa a produzir tanto um retrato absolutamente fiel do corpo humano como também a derivar dele princípios geométricos e dinâmicos", diz Kemp. "É assombrosamente original."

Esta é a primeira sequência de desenhos anatômicos datados. E são, claramente, desenhos de um crânio real.

Da Vinci foi o primeiro artista a realizar uma autópsia humana completa, por isso seu conhecimento do funcionamento do corpo era muito superior ao de seus contemporâneos.

"Ele mostra como todos os nervos sensoriais se derramam em um único ponto do centro geométrico que ele chama de sensus communis, ou senso comum - de onde vem esse termo", explica Kemp, referindo-se ao local marcado em verde na imagem acima.

"O Homem de Vitrúvio é uma expressão de atividade interna, do dinamismo dentro do corpo humano", diz o especialista em Da Vinci.

"E tudo devia funcionar geometricamente. Seus desenhos anatômicos eram filosóficos, não médicos. E, filosoficamente, é imensamente ambicioso."

Inquieto

A camada final do desenho não tem nada a ver com Vitrúvio, é puro Da Vinci.

Trata-se do movimento que ele com as duas poses sobrepostas do homem.

"O movimento está ali", disse à BBC o desenhista gráfico Steve Maher.

"Da Vinci era um protoanimador, ficava observando as pessoas, analisava o movimento - algo que animadores fazem o tempo todo."

"Esse intento de capturar o movimento está, em alguns casos, em sequências de desenhos e, em outros, como no caso do Homem de Vitrúvio, dentro do desenho original."

O extraordinário desenho de Da Vinci pertence a um verdadeiro Panteão, um templo sagrado, que reúne as mais notáveis obras de arte já produzidas pela humanidade.

Sua fortaleza reside em capturar uma ideia: a de que as matemáticas sustentam tanto a natureza como o mundo feito pelo homem.

Ele representa uma síntese de arquitetura, anatomia e geometria.

Mas são a perfeição e elegância da solução de Da Vinci para o enigma do quadrado e do círculo proposto por Vitrúvio que dão ao desenho seu poder e beleza.

* Parte desta reportagem foi adaptada de um capítulo da série da BBC "A Beleza dos Diagramas"


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