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Limitar juros de cartão e cheque a 30% não vai melhorar vida dos pobres

juros, taxa de juros, porcentagem, desconto - Getty Images
juros, taxa de juros, porcentagem, desconto Imagem: Getty Images
do UOL

12/08/2020 04h00

Não é a primeira vez que escrevo sobre este tema neste ano e confesso que este assunto tem me cansado. Mas, não sendo político e muito menos tendo qualquer pretensão eleitoral, me sinto na obrigação, como economista, de alertar mais uma vez sobre o absurdo que significará a aprovação também pela Câmara do Projeto de Lei 1.166/2020, já aprovado pelo Senado.

O texto que tive acesso (substitutivo do Senador Lasier Martins do PDT/RS) estabelece um teto para cobrança de juros entre 30 a 35% (veja mais em: Senado limita juros do cheque especial e do cartão de crédito a 30% ao ano), a depender do tipo de instituição financeira, retroativamente a março. Ademais, impede a redução de disponibilidade de crédito (também tendo março por base) e proíbe a cobrança de multas e juros por atraso no pagamento das prestações de operações de crédito. Mas justiça seja feita, vários senadores contribuíram (55 emendas apresentadas ao total) para tornar o PL uma verdadeira aula de como se criar algo com todo tipo de incentivo errado.

Só a retroatividade a empréstimos contratados já seria um descalabro, uma vez que, além de sinalizar que os contratos nada valem neste país, imporiam um desajuste em toda a modelagem de risco anterior utilizada para a precificação das diferentes modalidades de crédito para os distintos atores da vida nacional. E certamente isso se refletirá na composição futura dos demais preços no sistema bancário. Em última instância, reforçaríamos a velha máxima de que no Brasil até o passado é incerto.

Também me chamou a atenção no PL apresentado o fato que os nossos senadores inovaram, buscando ao mesmo tempo controlar preço (juros) e quantidade (oferta de crédito), algo um tanto quanto suis generis sob a lógica econômica. Sem falar do convite que nos fizeram para não pagarmos nossos empréstimos, ao tirar multas e juros por atraso, ao menos durante a pandemia. Será que os bancos aguentarão o eventual aumento dessa inadimplência?

Pensando no futuro, fico imaginando dois personagens da nossa vida brasiliense dirigindo-se às instituições bancárias para pedirem empréstimo, felizes da vida com a decisão do nosso Congresso. Eduardo, por exemplo, um rapaz da região do Lago Paranoá, que está começando sua vida profissional como autônomo, acabou de casar e precisa de empréstimo para arcar com despesas extras temporárias. Dado o seu perfil profissional e a pouca relação bancária que ele tem, o banco pode entender que Eduardo faz parte de grupo que representa um risco mais elevado de não pagamento de empréstimo. Neste sentido, cobrará juros mais elevados, mesmo porque terá que remunerar na outra ponta os verdadeiros donos do dinheiro, ou seja, os depositantes, muitos deles de classe média.

Já Mônica, uma empresária da área do comércio do plano piloto, que emprega uma dezena de pessoas, e que, por conta da pandemia, necessita de mais capital de giro do que costuma pedir para manter sua loja. Em outras palavras, o risco do seu negócio pode ter se elevado para as instituições financeiras, que provavelmente também exigirão juros mais elevados, a exemplo do caso do Eduardo. Mas com seu conhecimento adquirido ao longo do tempo, Mônica acredita, que mesmo o custo do dinheiro estando mais caro, ela seria capaz de passar pela turbulência atual, manter seu negócio e continuar a gerar empregos.

O grande problema dessas duas histórias é que, com a decisão do Senado, tanto Eduardo como Mônica podem ter as portas dos bancos fechadas para empréstimo, uma vez que as instituições financeiras poderão interpretá-los como clientes cujo risco só deveria assumido com taxas de juros mais elevadas do que as permitidas com a nova lei, ainda mais com as demais restrições propostas. É claro que tanto Eduardo como Mônica, no desespero, poderiam recorrer a "mecanismos informais de empréstimos", como agiotagem. Mas por óbvio os juros cobrados seriam muito mais elevados, apesar dos mecanismos de recuperação de crédito serem "mais eficientes", uma vez que raramente o judiciário tem alcance sobre essa "turminha". Mas pior ainda é saber que dificilmente o Eduardo se livraria desse pessoal e provavelmente a Mônica quebraria, deixando as famílias de seus empregados também sem renda.

Em última instância, as histórias acima são apenas dois possíveis exemplos de serem contados e só provam que "de boas intenções o inferno está cheio". Com essa limitação dos juros, é possível que os grandes conglomerados financeiros passem a compensar essas perdas com elevação de tarifas bancárias, e preços de outros serviços, como seguros, etc. Aliás, é também possível que algumas instituições, que não têm cobrado por contas digitais, passem a fazê-lo, reduzindo o nível de universalização bancária" na economia, afetando principalmente os mais pobres.

Certamente há várias "disfuncionalidades" no nosso sistema financeiro e não tenho dúvida de que os juros aqui praticados são exorbitantes, principalmente quando comparados com os demais países no mundo. Algumas das razões para isso derivam das próprias restrições impostas pelo Estado Brasileiro, tais como dificuldade de recuperação de crédito e modelo de tributação. No passado, os juros primários definidos pelo Banco Central também poderiam explicar uma boa parte disso. Particularmente, eu vejo a falta de competição efetiva, derivada em grande medida de erros passados nas esferas regulatória e de defesa da concorrência, como uma das principais causas. Mas não se resolve isso por decisão legislativa sobre os juros, que são apenas o reflexo do problema.

Ao contrário, o teto dos juros e as demais propostas contidas no PL só criarão mais disfuncionalidades no mercado, com impactos negativos sobre a concorrência e para a população. Isto porque aquelas instituições menores, que atuam em nichos específicos de mercado, terão mais dificuldade de se ajustar, reduzindo sua capacidade de crescer e competir.

Há muito o que se fazer para termos um sistema bancário que cumpra sua função de intermediário financeiro, alocando o dinheiro de maneira eficiente a um custo razoável. Mas não podemos cair no "conto da sereia". Dois erros nunca formam um acerto. Na realidade, o que o Senado propôs terá impacto negativo sobre o mercado e, principalmente, reduzirá o acesso dos mais pobres ao sistema financeiro atual.

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