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Temporão: Pandemia deixará sequelas sociais e problemas psíquicos

do UOL

Afonso Ferreira, Leandro Pinheiro Tavares e Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

07/08/2020 13h15

Embora o Brasil registre cerca de 100 mil mortos por covid-19, o governo federal "naturaliza a pandemia" sem desconfiar que, além das mortes, quem foi infectado terá "sequelas para as quais não temos solução". A opinião é de especialistas entrevistados hoje no UOL Debate pelos colunistas Leonardo Sakamoto e Diogo Schelp.

Os convidados atribuem às 100 mil mortes à "incompetência e negacionismo" do governo em relação à ciência, denunciam a morte massiva de minorias, como a população indígena, criticam a venda de soluções "mágicas", como a cloroquina, e a "ilusão" do poder público de apostar todas as fichas em uma vacina.

Um dos convidados, o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão diz "o governo optou por naturalizar a pandemia, (...) como se apostasse na indiferença".

O resultado são as "evidências de que parte das pessoas que adoecem ao retornarem para casa passa a apresentar problemas de saúde, desde fadiga profunda a insuficiência respiratória e diabetes".

Parte dos curados vai ter problema lá na frente e vão engrossar a fila do SUS. (...) Espera-se uma epidemia de problemas neuro-emocionais. O sofrimento psíquico é muito grande. Vamos ter sequelas não só do próprio vírus, mas também de outras demandas de saúde que ficaram represadas.
José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde

Referência mundial em neurociência, o médico Miguel Nicolelis lembrou que no começo a covid-19 foi tratada como gripe comum, mas logo descobriu-se seus efeitos "a nível vascular". Logo depois pesquisadores perceberam que essas lesões apareciam em vários órgãos do corpo.

"O vírus conseguiu passar a barreira neural, cerebral e atacar a ponto de pessoas relatem sintomas nervoso-central, que até o momento são irreversíveis", afirmou. "Para boa parte dessas sequelas não existe tratamento. Temos sequelas novas, a tal pneumonia é uma doença terminal."

Infelizmente essa é a nossa realidade, as sequelas vão taxar o sistema brasileiro como nunca. Vão trazer problemas para os quais não temos nem solução.
Miguel Nicolelis, neurocientista

Negacionismo

Para a doutora em microbiologia pela USP, Natalia Pasternak, o Brasil se aproxima das 100 mil mortes "por um misto de incompetência e negacionismo".

"Não se combate um problema fingindo que ele não existe, com questões mágicas e negando da ciência", diz. "O Brasil (...) poderia ter evitado essas 100 mil mortes, mas a gente sabe que são mais de 100 mil."

Nicolelis atribui a alta letalidade no Brasil a um modelo de economia em que "a busca do lucro está acima da vida humana". "Chegamos aqui pelo total desprezo da biologia e negacionismo científico."

A médica critica o aplauso do poder público à "estabilização por cima" da pandemia.

"A gente não pode achar normal morrer mais de mil pessoas por dia. Parte dessas mortes são evitáveis e deviam ser evitadas", diz Pasternak. "O Brasil é enorme. O Sul começa a ser mais afetado agora, enquanto outras regiões já foram. Quando você computa tudo como sendo Brasil acaba tendo um platô."

Para Temporão "mais importante do que ter uma estrutura de saúde, tecnologia, leitos de UTI, é ter liderança nacional, mobilizar a sociedade, colocar a economia em serviço da saúde". "Perdemos isso desde o começo."

Minorias sofrem mais

Nicolelis lembra que o número de infectados está "12 vezes subnotificado". Boa parte dos mortos são minorias sem recursos financeiros e ajuda estatal. Ele cita a letalidade entre as gestantes, cujo índice é de 12,7% no mundo, mas "77% dos óbitos de gestante no mundo são no Brasil".

"Temos outros 2 subgrupos, mortes de profissionais de saúde e indígenas, que é outra preocupação tremenda", afirmou o neurocientista. "Havia 430 povos indígenas já infectados (...) Na periferia as mortes são quatro vezes maiores."

Para o ex-ministro, o governo errou ao não convocar os médicos especializados em saúde da família para a "linha de frente".

Infelizmente a distribuição dos leitos mantém a mesma estrutura regional, cristalizando desigualdades. Foi um erro não ter colocado o nosso exército da Saúde da Família como linha de frente no combate a pandemia.
José Gomes Temporão, ex-ministro

Cloroquina, "um erro tremendo"

De acordo com Nicolelis, muitos óbitos "ocorreram no Brasil por uso indevido de uma droga que não tem efeito", em referência à cloroquina, defendida pelo presidente.

"A população ve o presidente e pensa que essa é pra ser seguido. Foi um erro tremendo", disse.

O Brasil virou uma piada (...) Nem [o pintor] Salvador Dalí conseguiria porque o grau de surrealismo não dá pra expressar.
Miguel Nicolelis, neurocirurgião

O que ainda dá para fazer?

Para a bióloga, há tanto a fazer para conter a pandemia que o melhor é começar pelo que não foi feito. "Não foi feito uma boa comunicação com a sociedade e ainda se fez propaganda de cura milagrosa".

"Todos os países que estão reabrindo implementaram as medidas de quarentena, tiveram comunicação honesta e não comunicaram certezas de curas milagrosas", diz ela, para quem "não podemos programar a vida" em função de uma nova vacina.

Ela defendeu a formação de uma "comissão de comunicação com a sociedade que seja transparente" porque "se ate hoje não compreendemos conceitos básicos, estamos falhando".

"As pessoas não sabe como usar máscaras, as pessoas acham que ficar em casa é só não ir na rua (...), as pessoas não entenderam o que é uma quarentena e tem outras que que acham que é gripezinha", conclui.

Vacina é a solução?

Para os especialistas, o governo erra ao apostar tudo em uma vacina. Para Temporão, o poder público "se apoia na ilusão" de que uma vacina pode salvar o Brasil do alto número de mortes por covid-19.

Ironicamente, um governo que ofende tanto a ciência, agora se apoia na ilusão e pensamento de que vamos ter uma bala de prata pra resolver tudo.
José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde

Temporão se refere à decisão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que ontem assinou uma MP (medida provisória) que libera quase R$ 2 bilhões para viabilizar a produção e a disseminação de uma das vacinas testadas no enfrentamento à pandemia do coronavírus.

A pesquisadora concorda. Ela disse que "não podemos programar a vida" em função de uma nova vacina porque "pode ser que simplesmente não funcione".

"A gente ainda não entendeu nossa resposta à imunidade ao vírus. (...) Ainda está confuso", disse ela, que fez um alerta a quem planeja pular Carnaval no ano que vem.

"Não vai [pular o Carnaval], cara. Quem pula Carnaval estará no fim da fila pra receber a vacina. Primeiros será o grupo de risco, depois os profissionais da saúde."

Para a especialista, o governo faz populismo com a vacina.

Não se pode fazer da vacina um instrumento político. (...) Fazendo populismo com ferramentas que não estão prontas ou não existem.
Natalia Pasternak, bióloga


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