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Plano de recuperação econômica da UE pós-coronavírus pode dar novo rumo ao bloco

03/06/2020 08h05

Uma década depois da crise das dívidas, que levou a zona do euro à beira da implosão, uma nova e inesperada recessão coloca de novo a Europa diante do desafio da solidariedade entre os países do norte em relação aos do sul. A Comissão Europeia propõe um plano inédito bilionário de recuperação econômica dos mais atingidos pelo coronavírus - no que também é uma resposta política à ascensão de governos eurocéticos e à ferida aberta do Brexit.

O Fundo de Recuperação Pós-Covid-19 chega a 750 bilhões euros. Desse valor, um terço será oferecido em empréstimos e o restante, 500 bilhões de euros, em subvenções que, na prática, significam transferência de recursos para as economias mais debilitadas pela pandemia, em especial a Itália e a Espanha.

"É um progresso muito importante, principalmente político e simbólico. Já tivemos mecanismos de ajuda financeira, mas eram empréstimos. A crise de 2010 resultou na criação do Mecanismo Europeu de Estabilidade, que chegou a montantes semelhantes, porém era preciso reembolsá-los, sob condições", relembra o economista Thomas Grjebine, do Centro de Estudos Prospectivos e de Informações Internacionais (CEPII), de Paris. "Agora, haverá condições, mas a grande diferença é que alguns poderão se beneficiar de uma ajuda de um valor superior ao que contribuiu."

Reviravolta mexe em "traumas" de Merkel

A reviravolta em relação à crise da zona do euro tem um nome: Angela Merkel. A um ano de deixar o poder, a chanceler alemã reforçou a liderança pró-europeia, como constata o professor de Estudos Europeus da universidade suíça de Friburgo, Gilbert Casasus, doutor pela Universidade de Munique.

"Certamente, há avanços históricos na maneira na qual a União Europeia chegou a este plano, que representa uma mudança enorme de parâmetros. Há uma melhora muito significativa da resposta franco-alemã para crise na Europa. A rigidez e a ortodoxia alemã prevalecem, mas houve uma mudança de postura extremamente importante da parte de Angela Merkel, frisa o especialista em política-econômica europeia.

Casasus avalia que, nestes 10 anos, a Alemanha tingiu uma posição de tamanha força dentro do bloco que, agora, se permite fazer mais concessões - inclusive ao parceiro francês, com quem divide o protagonismo deste plano de recuperação.

O Fundo Pós-Covid-19 é também uma maneira de compensar a imagem negativa que o país ficou depois das condições de empréstimo draconianas impostas à Grécia, onde a chanceler passou a ser vista como neonazista nos protestos contra as exigências europeias em troca de ajuda financeira.

"Isso deixou resquícios no povo alemão. Imagine se os mesmos símbolos, por menos justificados que sejam, se repetissem nas ruas de Madri ou de Roma? Haveria um significado ainda mais importante", compara Casasus. "A divisão norte-sul é problemática para o bloco europeu e vinha ficando cada vez mais perceptível - e cada vez mais prejudicial à construção europeia."

Países do norte compensam compradores do sul

Thomas Grjebine ressalta ainda que, neste período, os países mais ricos se beneficiaram da zona do euro para sair da crise. "Eles exportavam mais porque havia outros países que compravam os produtos deles - e esses países eram os do sul. A Espanha comprou muito da Alemanha e ajudou a sustentar a balança comercial positiva da Alemanha", observa o pesquisador do CEPII. "Acho normal que, em algum momento, haja uma contribuição dos países do norte, que se beneficiaram tanto desse sistema. Se a Itália fosse levada a sair da zona do euro, seria uma catástrofe para a Alemanha e os países do norte."

O anúncio do plano pela comissária europeia, a alemã Ursula Von der Leyen, animou os mercados e aumentou a confiança no bloco, mas ainda precisará da aprovação de cada um dos membros da União Europeia para entrar em vigor. O caminho se anuncia espinhoso.

Federalismo à vista?

Ao prever que a Comissão possa tomar empréstimos nos mercados financeiros, numa dívida assumida por todos, o texto abre a possibilidade de criação de um Tesouro europeu. Para Thomas Grjebine, significaria o início de um sistema federalista no bloco, sob o comando franco-alemão - uma ideia que pode encontrar duras resistências.

"O que aconteceria se forçássemos os países do norte a aceitar? Teríamos um aumento ainda maior dos populismos nestes países? E nos do sul, quando começar a aumentar a pressão para eles terem de pagar esse empréstimo, eles aceitarão se sujeitar às condições europeias, sobre a condução da política econômica nacional?", questiona-se o economista. "Se queremos um princípio de federalismo, significa que haverá uma instância federal que controla o que você faz."

Para ele, a atuação do Banco Central Europeu será ainda mais determinante do que o plano de recuperação. Ao comprar obrigações dos países em mais dificuldades, o BCE poderá manter sob controle as taxas de juros impostas a essas economias - uma ferramenta mais eficaz para combater a crise a longo prazo.

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