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'Pessoas na linha de frente estão morrendo', diz médico de hospital de campanha do Rio

24.mai.2020 - Enfermeiro voluntário Maycon Nogueira prepara paciente com sintomas de covid-19, em ambulância, para transferência até um hospital  - Mauro Pimentel/AFP
24.mai.2020 - Enfermeiro voluntário Maycon Nogueira prepara paciente com sintomas de covid-19, em ambulância, para transferência até um hospital Imagem: Mauro Pimentel/AFP

26/05/2020 12h49

Ele é major, médico da Polícia Militar do Rio de Janeiro e se ofereceu como voluntário para atuar na linha de frente do combate ao novo coronavírus num hospital de campanha. Em entrevista à RFI, o cardiologista Daniel Carreiro de Alencastro Graça conta como é fazer "medicina de guerra", a frustração de perder pacientes jovens e relata histórias por trás das estatísticas de mortes da covid-19.

"Eu tenho 23 anos de formado, mais de dez anos de experiência em terapia intensiva com outras doenças, mas isso é uma coisa que eu nunca vivi antes", diz, após mais um plantão sob a lona do hospital montado na Barra da Tijuca, na zona norte da capital fluminense. O trabalho tem mexido com o médico experiente, que extravasa suas emoções num diário de bordo do "COVIDARIO", como ele e a equipe se referem ao local (ver trechos em citações).

"A morte é um fato e a gente vai ter que encarar, tanto a morte dos nossos pacientes, como dos nossos familiares, pois ela é inevitável. Mas existem mortes e mortes. A morte de um paciente idoso e que já esteja sofrendo é diferente de uma vida ceifada por um vírus", lamenta em entrevista por skype à RFI (ver vídeo).

"Não existe um tratamento eficaz, esse é o nosso grande desafio. O coronavírus tem um poder destrutivo absurdo, o que chama muito a minha atenção, principalmente em nível respiratório. As pessoas têm uma melhora muito lenta, praticamente imperceptível. E, às vezes, temos uma sensação de frustração", diz.

"Hoje eu percebo que o maior fator de risco está relacionado à obesidade. Inclusive, saiu um estudo na revista científica The Lancet que confirma que o perfil mais comum de pessoas infectadas é de obesos, negros e homens, com uma faixa etária acima de 55 anos. Só que como medicina não é igual à matemática, não existe uma regra. No CTI, nós temos pacientes de 17 e de 29 anos, sem nenhuma doença de base, internados com gravidade, no respirador, ainda que a maioria seja o perfil que eu falei antes", observa.

Falta de profissionais é o maior desafio

Inaugurado em 11 de maio por meio de uma iniciativa público-privada, o hospital de campanha do Parque dos Atletas é uma unidade de alta complexidade, equipada com tomógrafo, ultrassom, ecocardiograma, radiografia e laboratório de análises clínicas.

"Foram criados vários hospitais de campanha no Rio de Janeiro por ser o segundo maior epicentro da covid-19 no país, depois de São Paulo. A doença tem um contágio muito fácil e está ligada à maior densidade demográfica", explica Carreiro.

"É uma doença pouco conhecida para todos nós da área da ciência, que demanda cuidados especiais. Esses hospitais de campanha funcionam praticamente como uma medicina de guerra, onde você tem leitos divididos entre enfermaria e terapia intensiva, já que a covid-19 demanda internação prolongada de pacientes graves em CTI", acrescenta.

"No Parque dos Atletas, há 200 leitos, 50 para terapia intensiva e 150 de enfermaria. E há outros hospitais espalhados pelo estado do Rio, com objetivo de atender esse número crescente de pessoas infectadas, numa curva de contaminações ascendente", diz.

Apesar de ter recursos privados, o hospital de campanha é dedicado aos pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS).

"No Rio de Janeiro, a porta de entrada são as UPAS, hospitais com emergência, postos de saúde ou clínica da família. Os pacientes que precisam de internação passam por uma central de regulação do estado, que faz o levantamento de onde existem as vagas e a transferência dos pacientes", explica.

"No início, foi uma loucura, com muitas internações. A gente abriu com 30 leitos e uma semana depois passou para 50. Hoje, uma das maiores dificuldades são recursos humanos. Porque as pessoas que estão na linha de frente estão adoecendo, tanto do ponto de vista emocional, porque a pressão é muito grande, quando de infecção pela covid-19."

Mudança de protocolo

Desde o dia 19 de maio, o protocolo de atendimento de covid-19 no Rio de Janeiro passou por mudanças. Antes, o paciente era orientado a ficar em casa até que o quadro se agravasse. Hoje, a orientação é procurar atendimento médico aos primeiros sintomas de coronavírus.

"O medo era de que os 95% que manifestariam uma forma leve da doença, ou que não estivessem com o vírus, fossem à emergência e acabassem sendo contaminados. Mas isso gerou problemas, um deles é a subnotificação. Acredita-se que o quadro no Brasil seja em torno de dez vezes a realidade atual", calcula.

"No Brasil a gente nem pode reclamar, pois não fomos pegos de surpresa. A doença veio lá do Leste até chegar aqui, então fomos praticamente os últimos, junto com os Estados Unidos, e não estávamos tão crus quanto os médicos da China e da Itália", avalia.

"No hospital de campanha não faltam recursos nem equipamentos de proteção individual ou recursos hospitalares. A estrutura é ótima, os pacientes são monitorados, não faltam respiradores, um problema que ainda existe em alguns hospitais de campanha do Brasil. Ou seja, o paciente é do SUS, mas tem acesso à uma medicina de ponta", comemora o médico.

Não são números, mas pessoas e amores de alguém

Médico com larga experiência em terapia intensiva, Daniel Carreiro decidiu trabalhar no hospital de campanha devido ao aumento significativo de casos de covid-19 no Rio de Janeiro.

"A gente vê estatísticas que falam em 100, 200, 900 e hoje temos 1.200 pessoas que morrem diariamente. A gente não pode esquecer jamais que não são números. São pessoas e são amores de alguém. São 1.200 famílias destruídas por dia", lamenta.

"A minha mãe tem 74 anos, é grupo de risco. Eu não a vejo há meses e provavelmente não a verei, por amor, por mais alguns meses. Ela ficou muito angustiada quando eu falei que tinha que ir para a linha de frente. Mas, por mais que seja uma batalha e uma luta contra o desconhecido, eu tenho conhecimento para ajudar", afirma.

"Médico também tem medo e estamos muito expostos, como todos os outros profissionais de saúde. Porém, eu estava incomodado de estar em casa, numa zona de conforto, sabendo que as pessoas estão morrendo, que estão precisando da gente e que estão faltando profissionais de saúde por inúmeros motivos", acrescenta.

Falta de diretriz

Enquanto na França o governo optou por um isolamento rigoroso da população, a fim de reduzir a curva de contágios e diminuir a necessidade de internações de casos graves, o Brasil adotou outro direcionamento. Há diferentes estratégias de um estado para outro e o Palácio do Planalto faz pressão para a retomada da economia.

"Economia, por mais que demore, a gente consegue recuperar, com seriedade e sem corrupção. Mas uma vida perdida, não tem volta", acredita Daniel Carreiro. "Faltou uma diretriz central do governo federal desde o início em determinar normas e falarem a mesma língua," diz, citando que o país já trocou pelo menos duas vezes de ministro da Saúde durante a pandemia.

"A comunidade médica ficou desolada. Ficamos desolados quando toda a comunidade médica tem uma ideia, o mundo todo faz um isolamento e a gente tem um líder, ou um 'pseudolíder' que não é a favor do isolamento, indo contra a linha adotada pelo mundo todo", desabafa.

"O que não pode é fingir que não existe o problema, que não vai acontecer a tragédia, fingir que é uma coisa boba. Quando dizemos que são 95% de cura ou que vão evoluir bem, e só 5% que vão para a fase crítica, mas se a minha mãe estiver dentro dos 5%, para mim é 100%", compara.

Hidroxicloroquina e automedicação

Enquanto pesquisadores trabalham em estudos sobre possíveis tratamentos para a covid-19, até o momento não há comprovação científica da eficácia da cloroquina e a da hidroxicloroquina, medicamento usado contra a malária e testado contra o coronavírus.

"Existem várias conjecturas, pois a doença é um gigante desconhecido, e você acaba analisando se pode ter uma ação, ou não, então se tenta, porque o doente está grave e piorando e você acaba fazendo o que se chama de medicina de guerra", afirma o médico.

Sobre o fato de o governo brasileiro ter emitido um protocolo sobre o uso da cloroquina em pacientes de covid-19, Carreiro é categórico sobre os riscos desse medicamento sem acompanhamento médico. Ontem, a Organização Mundial da Saúde suspendeu todos os testes clínicos com a cloroquina, após publicação de pesquisa científica que considera o seu uso ineficaz ou prejudicial.

"Você não tem uma evidência científica, mas também não vai ficar de braços cruzados. A hidroxicloroquina, contudo, apesar de ser um remédio que existe no mercado há anos, inspira cuidados na sua utilização e tem efeitos colaterais importantes, como arritmias e morte súbita. Você não pode sair dando como se fosse uma receita de bolo para todo mundo", alerta.

"Uma coisa é a pessoa se automedicar, ela corre o risco, ela pode tomar o que ela quiser e responder por seus atos. Outra coisa é institucionalizar, em nível federal, a utilização dessa medicação. E o pior, como se fosse a solução de todos os problemas", adverte.

"Manaus, no norte do país, foi o caos. Não havia leitos, as pessoas não estavam conseguindo internação. Foi uma disseminação muito grande da doença e aumentou quatro vezes o número de mortes em casa. Ninguém sabe se as pessoas estavam com medo de procurar a emergência, porque achavam que os sintomas eram leves, e aí pioraram e morreram, ou se estavam tomando a hidroxicloroquina, porque em Manaus, como você tem uma endemia de malária, ela é muito utilizada," afirma.

Doença versus oportunidade

No contexto de uma pandemia mundial, em que a população recebe uma enxurrada de falsas informações e o debate assume um viés político, o médico aconselha:

"As pessoas devem procurar se informar, cada vez melhor, sobre os sintomas da doença, e esquecer um pouco a política. É um absurdo ver pacientes morrendo, um problema de saúde gravíssimo mundial e muitos estarem discutindo política e brigando. O que precisamos é informação eficaz, não automedicação. Precisamos de acompanhamento médico e, para quem de fato possa ficar em casa, que fique", orienta.

"A gente não pode achar que o governo é o único responsável. Isolado não é festinha em condomínio, isolado não é caminhar na beira da praia, isolado é prevenir contato", alerta.

"A gente que tirar o lado bom, saber que tem de ser mais solidário, saber o valor de uma vida humana e reconhecer a missão do profissional de saúde. Você saber que precisa ter mais contato com os seus filhos, que trabalho não é tudo na vida e que dinheiro não resolve, porque o coronavírus veio para mostrar isso, ele mata independente de classe social", conclui.

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