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As lições de três eventos catalisadores do novo coronavírus na Europa

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Imagem: Getty Images

Gabriel Bonis

De Berlim para a BBC News Brasil

05/04/2020 15h46

Evitar concentrações e implementar distanciamento social são medidas benéficas, e um número pequeno de infectados pode contaminar grandes grupos.

Apesar do tom mais moderado em pronunciamento sobre a pandemia de covid-19 na terça-feira (31), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) demonstrou nas últimas semanas sua preferência pelo fim do isolamento da maior parte da população.

Em meio a atritos com governadores que implementaram medidas de distanciamento social em seus estados, o presidente participou de eventos com aglomerações e decretou igrejas como serviços essenciais, consentindo que realizassem celebrações em espaços lotados.

O argumento de Bolsonaro sobre o retorno à vida normal para preservar a economia e empregos encontrou repercussão em parte do setor empresarial, que organizou carreatas em diversas cidades brasileiras pedindo a reabertura do comércio na semana passada. A Organização Mundial da Saúde (OMS), por outro lado, continua recomendando o "distanciamento físico" em países com transmissão comunitária do vírus, caso do Brasil.

Qual, então, seria o melhor caminho a seguir?

Uma partida de futebol em Milão, na Itália, uma festa em uma boate de Berlim e celebrações de Carnaval no distrito de Heinsberg, na Alemanha, podem ensinar ao Brasil algumas lições sobre a rápida propagação do Sars-CoV-2 em diferentes ambientes e a necessidade de isolamento social.

O prefeito de Bergamo afirmou na última semana de março que o jogo da Liga dos Campeões entre Atalanta, um pequeno time da cidade do norte italiano, e Valencia ajudou a espalhar o vírus no país e na Espanha —apesar de haver outros fatores envolvidos.

Cerca de 40 mil torcedores assistiram à partida das oitavas de final da competição europeia no estádio San Siro, em Milão, em 19 de fevereiro. Nas semanas seguintes, mais de um terço dos jogadores e da comissão técnica do Valencia testaram positivo para o vírus, assim como diversos fãs.

"O estádio estava lotado e, depois (da partida), os bares também. Com certeza naquela noite houve uma grande intensificação do contágio", disse Giorgio Gori.

A Lombardia, onde Bergamo e Milão estão localizadas, é a região italiana mais afetada pela pandemia, com 8.656 mortes confirmadas até este sábado (4), mais da metade do total registrado no país.

No Brasil, Bolsonaro contrariou as recomendações de seu próprio ministro da Saúde para que a população evitasse aglomerações e visitou comércios em Brasília, onde chegou a posar para fotos com apoiadores.

"[Um evento ao] ar livre não é uma dificuldade para a propagação do vírus se houver contato muito próximo e se alguém estiver, por exemplo, gritando ou expelindo secreções em cima de outras pessoas", explica à BBC News Brasil o especialista em higiene e medicina preventiva Paolo Bonanni, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Florença, na Itália.

Sabe-se que o Sars-CoV-2 espalha-se, em geral, pela saliva ou secreções de pessoas infectadas que entram em contato com as mucosas de indivíduos saudáveis.

"Quem tiver gotículas de saliva sobre si, tocará o nariz e os olhos porque geralmente fazemos isso entre duas ou três vezes por minuto, mesmo sem perceber. Isso ajuda a espalhar o vírus mesmo em espaços ao ar livre, como em um desfile de carnaval", completa o médico.

E foi durante festividades de carnaval que diversos casos do Estado alemão da Renânia do Norte-Vestfália se originaram. Os dois primeiros identificados na região foram um casal assintomático que participou durante alguns dias de eventos no distrito de Heinsberg. Cerca de 300 pessoas estiveram na mesma festa que o casal.

De imediato, três indivíduos próximos do homem e da mulher foram contaminados. As autoridades locais tentaram rastrear uma grande quantidade de pessoas com quem eles tiveram contato, incluindo crianças e funcionários de um jardim de infância onde a mulher trabalhava. Ao todo, cerca de mil moradores foram colocados em quarentena e escolas e prédio públicos fecharam.

O vírus, contudo, se espalhou por toda a Renânia do Norte-Vestfália. Atualmente, o Estado tem o segundo maior número de casos (18.735) da Alemanha, atrás da Bavária (23.846), de acordo com os dados divulgados neste domingo (5) pelo Robert Koch Institute (RKI), agência do Ministério da Saúde responsável pelo controle de doenças no país.

O distrito de Heinsberg, localizado na região, tem um dos piores índices de casos por 100 mil habitantes.

Entre 12 e 30 de março, foi o único em todo o país considerado uma "área particularmente afetada" pelo RKI, que abandonou a classificação uma vez que o vírus "está espalhado por toda a Alemanha" e "há surtos em muitos distritos".

Sem multidões

A OMS recomenda que países com transmissão comunitária considerem adiar ou reduzir eventos que possam provocar aglomerações.

Em uma breve análise de estudos relevantes para a pandemia do SARS-CoV-2, o Centro de Medicina Baseada em Evidências (CEBM) da Universidade de Oxford identificou algumas evidências sobre a eficiência de algumas medidas para desacelerar a transmissão de vírus semelhantes.

Entre os achados estão a quarentena daqueles que tiveram contato com infectados, fechar escolas e a proibição de reuniões públicas - que, "em combinação com outras intervenções, por uma média de 4 semanas, poderia reduzir a taxa de mortalidade semanal".

No dia 25 de março, o presidente brasileiro informou que o governo federal recomendava o "isolamento vertical" da população, afastando do convício social apenas idosos e pessoas com doenças pré-existentes. Uma afirmação que gerou críticas entre especialistas para os quais um isolamento amplo é mais adequado para desacelerar a propagação do vírus.

"A recomendação é que todos aqueles com sintomas fiquem em casa. Não apenas os idosos ou aqueles com sistema imunológico comprometido. A razão para isso é que as pessoas que estão em boa forma e que se infectam com um caso leve podem transmiti-lo a grupos vulneráveis'', explica David Nunan, pesquisador sênior do CEBM.

"No momento, não há outra opção. Sem um distanciamento social severo, haverá problemas. Temos que ganhar tempo para que muitas pessoas não acabem na emergência dos hospitais", completa Bonanni.

Uma festa em Berlim

A propagação do novo coronavírus é ainda mais eficiente em locais fechados, conforme a famosa vida noturna de Berlim pôde confirmar pouco depois de o primeiro caso ser identificado na capital alemã.

Uma festa em 6 de março na boate Kater Blau, uma das mais famosas da cidade, foi o foco de diversas contaminações. Segundo a emissora alemã Welt, um homem que havia retornado da China com sintomas do covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus, esteve por diversas horas no local.

Uma jovem e dois amigos que visitaram a boate naquele dia testaram positivo. Assim como o homem que os contaminou, eles mantiveram contato com dezenas de pessoas na festa e nos dias seguintes. Um deles trabalhava em um mercado, onde expôs centenas de clientes ao vírus.

Somente no dia 14, após não conseguir respostas de autoridades locais, a boate anunciou que alguém contaminado esteve na festa. Logo depois, a cidade postou um pedido para que os participantes do evento festa entrassem em contato. Mais de mil pessoas responderam.

Em uma entrevista ao Welt, a jovem mencionada anteriormente disse que cerca de metade das 30 pessoas com quem teve contato ficaram doentes, mas não fizeram o teste.

E essa não foi a única boate com casos de covid-19 registrados na cidade. Uma pessoa infectada contaminou ao menos outras 50 em um local chamado Trumpet.

"Para o coronavírus, uma pessoa, em média, contaminará outras três. Mas se houver alguém infectado em um ambiente muito fechado em que alguém esteja em contato com 50 pessoas, todas elas poderão estar contaminadas", explica Bonanni.

"Devemos considerar ainda que, especialmente para os coronavírus, existem pessoas consideradas 'supertransmissoras'. Elas replicam muito mais vírus que a média. Nesse sentido, se alguém em uma boate for supertransmissora, ela é capaz de contaminar o meio e muitas pessoas. Não há limite para o número que se pode contaminar em ambientes fechados", diz.

Riscos em áreas densamente povoadas

Conforme os primeiros casos do novo coronavírus são confirmados nas favelas brasileiras, muitas delas densamente habitadas, os especialistas mostram preocupação com a velocidade com a qual o vírus pode se espalhar. Seria um cenário semelhante ao de uma boate se os habitantes dividirem casas pequenas com muitos moradores.

"Sabemos que áreas grandes e densamente povoadas com pobreza generalizada são mais vulneráveis a pandemias suspensas no ar. Creio que a covid-19 se espalharia rapidamente se não houvesse medidas de contenção nessas comunidades", argumenta Nunan.

Para Bonanni, nesse cenário são altas as chances de toda a família ser infectada e seria muito difícil conter o "número de pessoas com uma doença grave".

"Para fazer uma comparação, a Itália só descobriu o problema quando o incêndio já era grande. Espero que o incêndio seja menor no Brasil. Mas se for tão grande quanto no final de fevereiro na Lombardia, será um problema muito, muito grande para as pessoas que vivem em espaços restritos."

Um levantamento da BBC News Brasil indica que o Brasil teve mais mortes por dia do que a Itália, atualmente o país com mais vítimas pela pandemia, desde que o primeiro óbito foi registrado. "Se a situação do Brasil fosse muito semelhante à da Itália, eu ficaria muito preocupado em não fazer um distanciamento muito claro. Se fosse o mesmo que em alguns países europeus, deveria fechar tudo", diz Bonanni.

"É um equilíbrio difícil entre saúde e economia, mas acho que o primeiro dever de qualquer governo é a saúde e a segurança de seu povo", afirma Nunan.

Os três exemplos europeus indicam a necessidade de se agir rápido e que não se deve menosprezar como o vírus se espalha por meio de poucas pessoas.

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