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Pianista Igor Levit luta online contra a solidão do coronavírus

Anastassia Boutsko (av)

29/03/2020 11h19

Pianista Igor Levit luta online contra a solidão do coronavírus - Já são "cult" os concertos que o músico teuto-russo dá pelo Twitter, de sua sala de estar, desde o início da pandemia. A crise força a repensar o setor de concertos, o papel do público e o real sentido da música.Há quase duas semanas o ritual se repete para milhares que estão de castigo em casa por causa do novo coronavírus: às 19h00 (15h00 em Brasília) em ponto aparece na tela do smartphone uma sala-de-estar, inicialmente vazia. Ao fundo veem-se um piano de cauda e uma pintura. Alguns segundos mais tarde, entra no enquadramento o anfitrião, o pianista Igor Levit.

Sempre de preto, mas com roupas casuais e descalço ou de meias, o teuto-russo senta-se ao piano. "O apartamento dele certamente tem assoalho aquecido", comenta imediatamente um dos seguidores do live stream.

"Bem, meus caros, hoje vou de novo tocar Beethoven para vocês: Sonata para piano nº 17. Espero que o Twitter não caia desta vez", comenta Levit, e conta brevemente, em duas línguas, por que essa obra de 1801, também denominada A tempestade, realmente era e é revolucionária.

A imagem pisca de vez em quando, a qualidade de som é modesta, mas a interpretação, tão brilhante e incondicional quanto em um concerto diante de uma sala lotada – onde Igor Levit não pode tocar, exatamente como todos os demais músicos.

E, no entanto, o ano começara fantástico para ele: aclamada pela crítica, sua gravação de todas as sonatas para piano de Beethoven ocupou o topo das paradas de sucesso da música erudita; o pianista nascido em Gorky, hoje Nijni Novgorod, comemorou os seus 33 anos em 10 de março na sala de concertos Elbphilharmonie lotada. E aí veio o coronavírus.

O live-stream segue adiante, a comunidade virtual se multiplica de minuto a minuto. Não se sabe bem em que prestar atenção, se nas mãos do virtuose ou nos comentários dos fãs: corações azuis, cor-de rosa, verdes jorram sem parar.

"Muito obrigado", exclama-se de todos os cantos da Alemanha: de Meerbusch e Marburg, Gütersloh e Kassel, do bairro berlinense Charlottenburg, ou de Ehrenfeld, em Colônia, da cozinha ou da banheira. Mas também se agradece em espanhol e em italiano, vêm saudações de Cambridge, Tel Aviv e Washington, um ou outro escreve em alfabeto cirílico.

Aparece tanto conhecedores quanto novatos: "É assim que eu quero conhecer música de piano!", escreve um. O compositor também recebe muitos elogios: "Que surpresa, como Beethoven soa moderno!"; "Igor salva o elemento coesivo da música, Beethoven teria aplaudido – era a ideia dele!". Trinta minutos passam rápido, o pianista sai do quadro em silêncio, logo em seguida pode-se assistir à gravação no Twitter.

Música sem ouvintes?

Conhecido dos jornalistas como entrevistado eloquente e cidadão sempre engajado, no mesmo dia Igor Levit aparece diante do monitor em seu escritório, para uma coletiva de imprensa por videoconferência. Thorsten Schmidt, diretor-geral do festival Primavera de Heidelberg, está igualmente conectado. Também ele é uma vítima do coronavírus: em vez de transmitir concertos caseiros informais pela internet, na realidade o pianista deveria estar fazendo seis apresentações no evento de Schmidt.

Para ambos – o músico e o "capacitador de música", como Levit denomina Schmidt – a situação é mais do que amarga. Todos parecem ter se perdido mutuamente: o público perdeu o artista, este ao público e aos promotores culturais. "E a única coisa que agora existe realmente é a arte em si", observa Levit.

E ela não basta para um artista? "Com tudo respeito: claro que se pode dizer que se faz música para si mesmo. De certo modo, é isso mesmo. Mas o cerne se perde: a vivência comum. Sem compartilhar e sem o 'estar juntos', uma impressão musical só vale a metade."

Só que, como preservar esse sentimento de partilha em tempos de isolamento intencional? Após o primeiro choque, e "para quebrar a cadeia das solidões", adentram-se espaços virtuais. Concertos em live stream são agora um formato que o artista Levit descreve como "fator curativo, salvador até", também para ele mesmo.

Como é tocar para uma comunidade de Twitter invisível, em vez de diante de uma sala lotada? "É bem solitário. É muito diferente, mas, surpreendentemente, tornou-se quase mais intenso", explica o pianista. E tira mais um elemento positivo da situação: súbito, a música não é um produto em embalagem de luxo para gourmets; tampouco uma "máquina de fazer dinheiro" para os promotores.

Ela passa a ser o que era ao nascer: um meio de vivenciar o que há de comum com outros seres humanos. "E aí não importa o repertório: quer eu toque Beethoven, Mozart, Stockhausen ou A Pantera Cor-de-Rosa, a questão é estar juntos. Bem-vindos à realidade!"

Talvez citar A Pantera Cor-de-Rosa tenha sido um certo exagero, mas no que concerne o mundo digital, há muito era necessário um teste de estresse para a realidade, afirma Igor Levit: "Até agora, fomos muito levianos com a discussão sobre o que realmente significa 'digitalidade'. Ainda estamos engatinhando."

Três corações azuis

Como diretor executivo que é, Thorsten Schmidt precisa também considerar outros aspectos: como uma empresa – e um festival – sobrevive numa época de crise? Regra número um: preservar a clientela cativa. E assim a Primavera de Heidelberg e Levit convidaram para dois concertos, em live stream no website do festival.

No primeiro, em 26 de março, às 19h30, Levit tocou Brahms e Beethoven com a violoncelista Julia Hagen. A sexta-feira, 27 de março, ele dedica a uma das obras pianísticas centrais do século: os 24 Prelúdios e Fugas do russo Dmitri Shostakovich.

O concerto original há muito já estava com lotação esgotada. Os compradores são convocados a, em vez de pedir o reembolso, doar a quantia para a fundação destinada a apoiar artistas em situação de emergência extrema. Se não, quando a crise houver passado, arrisca-se só encontrar palcos vazios.

Os concertos caseiros vão continuar? "Claro, toda noite!", assegura o pianista. Ele vai tocar, e os coraçõezinhos coloridos vão voejar. "O que vamos fazer quando o corona tiver passado e o Igor sair de novo em turnê?", pergunta alguém. "Ir a um concerto", respondem diversos fãs, "Comprar ingressos!". "Mas como vamos nos reconhecer na sala de concertos?" "Vamos usar três corações azuis!", sugere outro.

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Autor: Anastassia Boutsko (av)

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