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'Por que me casei com minha mãe'

Para o casal, que está há 48 anos juntos, adoção foi artimanha legal - Lillian Faderman/Divulgação
Para o casal, que está há 48 anos juntos, adoção foi artimanha legal Imagem: Lillian Faderman/Divulgação

25/02/2020 14h34

Lillian Faderman e Phyllis Irwin se apaixonaram há quase meio século na Califórnia e tiveram um filho na década de 1970. Mas, como as normas da época proibiam a homossexualidade, elas encontraram uma maneira curiosa de estabelecer uma família reconhecida por lei.

Em 1971, em meio ao nascimento do movimento de libertação das mulheres, Lillian Faderman, professora da Universidade Estadual da Califórnia, entrou em contato com uma das diretoras acadêmicas da instituição, Phyllis Irwin, para abrir um programa de estudos sobre mulheres.

Foi o começo de um amor que durou quase meio século, mas repleto de obstáculos.

Quando elas se conheceram, a homossexualidade era ilegal. "Éramos consideradas criminosas em quase todos os Estados do país", elas lembram.

"A maioria das lésbicas permanecia escondida."

Mas isso não as impediu de formar uma família juntas e de conseguir que fossem reconhecidas como grupo familiar perante a lei.

Em entrevista à BBC, as mulheres contaram como encontraram uma maneira de usar as regras para que sua família tivesse o reconhecimento legal que a sociedade da época lhes negava.

Inseminação artificial

Quando começaram a namorar, Lillian e Phyllis não eram abertamente lésbicas.

"Naquela época, você sabia que deveria manter a boca fechada e continuar com a vida", diz Phyllis, hoje com 91 anos.

Na década de 1970, as relações entre pessoas do mesmo eram punidas pela lei em muitos Estados dos EUA.

No entanto, elas admitem que a direção da universidade sabia do relacionamento.

"Eles nos chamavam de Phyllian e Lillis porque estávamos sempre juntas", ri Lillian.

"Acho que nossos colegas deduziram isso e, quando comecei a publicar livros sobre a história do lesbianismo, parece-me que todos entendiam que éramos um casal".

Três anos após a união, elas decidiram ter um filho. Lillian, 11 anos mais nova que Phyllis, foi ver um especialista em uma clínica de fertilidade.

Fazer uma inseminação artificial era incomum. Ainda mais para uma mulher solteira.

Mas Lillian conseguiu convencer o médico a ajudá-la, sem revelar as verdadeiras razões pelas quais queria ter um filho sem estar em um relacionamento com um homem.

"O médico me perguntou por que eu não tinha me casado se queria ter um bebê", lembra.

"Respondi: 'Tenho 34 anos, doutorado e sou vice-presidente de assuntos acadêmicos da universidade. Acho que isso espanta os homens.'"

O médico simplesmente respondeu: "Entendo o que você diz". E realizou a inseminação, que foi bem-sucedida.

Família de três

Em 1975, Lillian deu à luz Avrom, o único filho do casal. Phyllis a levou para o hospital, mas, a pedido da Lillian, que temia que ela pudesse ter medo durante o parto e repassá-lo ao bebê, esperou do lado de fora.

Tudo correu bem e as mulheres voltaram para casa, de repente convertidas em uma família de três.

No entanto, logo começaram a perceber as limitações de seu arranjo familiar particular. Especialmente do ponto de vista jurídico.

"Ficamos muito preocupadas, pois não havia laços legais entre nós", diz Lillian.

"O que mais nos preocupou é que, todas as vezes que Avrom ficava doente e Phyllis tinha que levá-lo ao médico, ela não era legalmente sua progenitora, então eu tinha que dar um documento assinado por mim nomeando-a como responsável pela criança".

"Mas o que mais me perturbava era que, se algo acontecesse comigo, ela não teria o direito legal de reivindicá-lo como filho. Do ponto de vista legal, ela era uma estranha para ele."

Naquela época, duas pessoas do mesmo sexo não podiam ser pais do mesmo filho.

Mas elas foram criativas e encontraram uma alternativa para formar um vínculo familiar reconhecido legalmente.

Mãe e filha

"No Estado da Califórnia, se houver uma diferença de dez anos ou mais entre dois adultos, um pode adotar o outro", diz Lillian.

Foi assim que Phyllis pode "adotá-la", tornando-se ? de acordo com a lei ? avó de Avrom.

Mas, questionadas se não era estranho que se tornassem mãe e filha, Phyllis diz que "não pensei nisso nesses termos, vi isso simplesmente como a maneira de ter um vínculo legal com Avrom".

Ela até ri que, como "mãe legal de Lillian", tinha "um relacionamento incestuoso".

Brincadeiras à parte, Lillian explica: "Não consideramos estranho, porque nunca nos sentimos como mãe e filha, fizemos isso simplesmente como uma maneira de contornar as leis".

"A lei dizia que duas mulheres não podiam se casar ? teríamos ficado felizes em casar ?, a lei dizia que não poderia haver um segundo pai do mesmo sexo e sabíamos que tínhamos que ter um vínculo legal, pelo bem de Avrom".

"Então fizemos isso. Não parecia nada estranho", diz.

Aparências

As mulheres decidiram usar essa história fictícia não apenas por questões legais.

"Uma vantagem da adoção é que Avrom, que nasceu em uma época em que não havia muitas outras crianças com duas mães lésbicas, quando ele era pequeno, pode apresentar Phyllis a seus amigos dizendo que ela era sua avó".

"Acho que isso foi mais fácil para ele, embora ele soubesse bem que Phyllis era sua outra mãe. Ele sempre a chamava de Mama Phyllis. Hoje ele tem 45 anos e ainda a chama de Mama Phyllis", diz Lillian.

Já Phyllis diz que não se importava em ser apresentada como a avó de seu filho.

"Fiquei feliz por ele se sentir confortável em me apresentar como uma pessoa importante em sua vida , de modo que o termo não me incomodava em nada".

"Certamente, tinha idade suficiente para ser avó dele!"

Mas o tempo acabaria por permitir que ela se tornasse oficialmente "Mama Phyllis".

Em 2008, a Califórnia permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Lillian e Phyllis se casaram no dia seguinte à legalização do casamento homossexual.

Como não haviam dissolvido sua falsa adoção, eram de fato mãe e filha que agora estavam casadas.

"Para nós, a adoção era algo apenas no papel, não nos importávamos", diz Lillian.

No entanto, em 2015, quando o casamento igualitário foi aprovado nos Estados Unidos, uma advogada disse que elas poderiam ter problemas se não cancelassem a adoção e se casassem novamente.

E foi isso que aconteceu: em 2015, elas já não eram mais "mãe e filha".

"Acho que temos mais laços legais do que qualquer outro casal do planeta", brinca Lillian.

Mas ainda havia a "cereja do bolo". "Quando Phyllis 'me desadotou', nosso filho percebeu que não tinha mais um vínculo legal com ela. Então pediu que ela o adotasse."

Foi uma bela festa de família, da qual Avrom participou com sua esposa e filho.

"Devo dizer que, de todas as coisas pelas quais passamos, a união civil, a cerimônia de casamento e tudo mais, foi isso o que mais me emocionou. Havia um homem crescido, sentado ao meu lado, e comecei a chorar. O juiz de paz também", lembra Phyllis.

"Foi algo realmente especial. Que esse homem que eu carreguei quando era bebê, para quem cantei todas as noites quando ainda estava no útero, e lá estava ele, querendo que eu realmente fosse sua outra mãe legal".

Em 2003, Lillian publicou suas memórias, nas quais conta sua incrível história de vida.


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