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A mulher que aos 7 anos quebrava castanha de caju no quintal e hoje chefia cooperativa do produto

Juliana Gragnani - Da BBC News Brasil em Londres

15/12/2019 07h15

Maria Cristina da Silva estudou, se formou em Geografia e realizou o sonho de organizar a forma de produção que era insalubre e desvalorizada.

Aos sete anos, Maria Cristina da Silva quebrava castanha de caju debaixo de uma árvore no quintal de casa, no povoado de Carrilho, em Sergipe. "Eu era bem pequena. Minha mãe acendia o fogo e assava a castanha, e nós, sete irmãos, quebrávamos a castanha durante o dia e íamos para a escola só durante a noite", lembra.

Suas mãos e as de seus irmãos ficavam manchadas durante dias porque manuseavam as castanhas sem luvas. Com sua queima, elas liberam um óleo característico que gruda na pele e a deixa vermelha.

Agora, aos 40 anos, ela trabalha com o mesmo produto, mas suas mãos não ficam mais manchadas. Maria Cristina da Silva é presidente de uma cooperativa de castanha de caju em Carrilho, com 30 associados. Não há trabalho infantil, e os trabalhadores têm material de proteção. O resultado é uma organização que produz artesanalmente cerca de duas toneladas de castanha prontas para consumo por mês, vendidas para Estados como Sergipe, Bahia, Alagoas, Rio de Janeiro e São Paulo.

A castanha de caju é um alimento nutritivo consumido em diversos país do mundo, e o Brasil costumava despontar como um dos três maiores exportadores. Em 2017, no entanto, segundo dados da FAO-ONU (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), o Brasil ficou em 7º lugar no ranking de exportação. A previsão de produção de castanha de caju para 2019, segundo o IBGE, é de cerca de 134 mil toneladas - e 99% dessa produção vem do Nordeste; a maior parte no Ceará, seguido do Piauí e do Rio Grande do Norte.

O Sergipe também figura na lista - e é ali onde fica Itabaiana, município a 54 km da capital com 95 mil habitantes conhecido como "capital do Agreste", bem no centro do Estado. Um dos povoados de Itabaiana é Carrilho, onde Maria Cristina da Silva cresceu e onde vivem cerca de mil pessoas. A principal fonte de renda dos habitantes do povoado é o beneficiamento de castanha de caju, como é chamado o trabalhoso processo de tirar a amêndoa da fruta e limpá-la para que chegue ao consumidor final.

"Acredita-se que, depois da abolição da escravidão no Brasil, muitos dos escravos que viviam em Itabaiana tenham se mudado para Carrilho e montado quilombos", explica Diana Mendonça de Carvalho, doutora em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe e professora da rede municipal de Itabaiana. A comunidade resquício de quilombos, então, sobrevivia principalmente da coleta de frutos, de pequenos animais de criação e da venda de serviços.

Na década de 1970, contudo, "segunda consta a lenda popular, pessoas ligadas a jogos de azar levaram sacos de castanhas para as comunidades de uma viagem que fizeram ao Piauí", narra Carvalho, "e as famílias fizeram a quebra dessas castanhas". Desde aquela época, a atividade passou a dominar o povoado de Carrilho.

Em várias regiões em que há o beneficiamento de castanha de caju, no entanto, traz registros de trabalho infantil.

Para o juiz do Trabalho da Paraíba Arnaldo José Duarte do Amaral, que em 2013 visitou uma comunidade no Rio Grande do Norte onde também havia crianças trabalhando na quebra da castanha, tanto o Estado quanto empresas que compram o produto precisam se envolver no combate ao envolvimento de crianças. "É preciso ter uma ação do Estado e da sociedade. Empresas precisam banir o trabalho da criança, exigindo seu afastamento do processo para realizar a compra, e comprar a castanha por um preço justo", diz.

Maria Cristina da Silva vê o trabalho que realizou quando criança como um jeito de sobreviver. "Era um trabalho familiar. A gente só estava ficando do lado da nossa mãe. Não era com intenção ou por maldade, era por necessidade", afirma. "Agora isso é visto como escravidão, mas para nós era luta, era sobrevivência."

Hoje, ela celebra a existência de uma creche na frente da cooperativa. Além disso, as crianças podem ir à escola em dois períodos diferentes. Para Silva, "as famílias têm mais recursos e as crianças estão mais livres para poder aprender mais".

Ela conta que cresceu trabalhando com a família, mas pôde frequentar escola e faculdade. Formou-se geógrafa pela Universidade Federal de Sergipe depois de casar e ter dois filhos, e isso lhe deixou "mais forte para poder dar conta do projeto".

"Sonhava em um dia ter uma forma organizada de produzir a castanha, de ter um produto", diz ela. "A gente via na TV, no supermercado... Sabíamos que a gente estava fazendo a coisa certa, que tínhamos um produto maravilhoso, mas que era necessária toda uma forma de organização do processo."

"A gente estuda e isso abre nossa mente, faz com que a gente enxergue oportunidades e argumente melhor sobre o que a gente acredita. Transformou minhas ideias e me empurrou para frente", diz.

Em 2012, passou seis meses fazendo cursos no Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), entidade privada de serviço social que estimula o empreendedorismo no país, aprendendo administração.

E, no ano seguinte, criou a Cooperativa de Beneficiadores de Castanha (Coobec), que mudou completamente a forma como o beneficiamento da castanha é feito no povoado. A cooperativa foi criada com apoio do BNDES, da Votorantim, e de outros, com um aporte financeiro de R$ 1,05 milhão à época.

"Foi uma trajetória de sorte, de oportunidades que chegaram e que eu me agarrei com a minha força e com a de todos que eu conheci. A força de todo mundo que quebrava a castanha e quebra até hoje", diz Silva. "Eu me orgulho muito de tudo que eu conquistei. Mas não cheguei até aqui falando de mim. Não falei só de mim, falei da história da minha comunidade, dos meus vizinhos, dos meus irmãos. Tive a oportunidade de mostrar a pessoas de fora o que a minha comunidade fazia."

"Minha trajetória foi árdua, mas foi feliz. E foi por todos os quebradores de castanha."

Em 2017, em uma viagem viabilizada pelo Sebrae, Silva foi à França representar a castanha de caju brasileira no Sirha, evento internacional da indústria de hotelaria e alimentação. "Fui de forma bem tímida, bem humilde", conta ela, mas o produto foi bem aceito e elogiado, conta, orgulhosa.

Processo

Antes, a castanha que seria beneficiada era comprada por meio de atravessadores, intermediários que não participam da produção, mas que lucram vendendo o produto para quem vai processar a castanha. Depois, compram o produto de volta, só que agora processado, para vender para a indústria. Nesse processo, que mantém a informalidade nas relações de trabalho e pode criar uma relação de dependência, o pequeno produtor que beneficia a castanha acaba lucrando muito pouco.

Silva conta que sua mãe recebia a castanha dessa maneira, por meio de atravessadores. Ela assava a castanha e fazia a quebra com os filhos durante a semana. No fim de semana, saía do povoado de caminhão para vender o produto, junto com tomate e cebola, em feiras livres de cidades próximas.

A cooperativa eliminou a figura do atravessador. Hoje, o grupo compra as castanhas diretamente de fornecedores de lugares que plantam o caju, como a Bahia e o Piauí.

O processo do beneficiamento também foi totalmente modificado.

Quando era criança, conta Silva, "trabalhávamos de qualquer jeito, sem luva, sem bota, sem postura nenhuma". "Trabalhávamos no chão, sentados. Não havia cuidado com a fumaça na hora de assar a castanha. Era um processo muito insalubre."

Um relatório feito em 2012 pela professora Diana Mendonça de Carvalho, que estudou o beneficiamento da castanha de caju no Grupo de Pesquisa sobre Transformações no Mundo Rural da Universidade Federal de Sergipe, diz que, em Carrilho, vários problemas no processo foram identificados: "afetam diretamente a saúde dos beneficiadores, como a fumaça (problemas respiratórios), postura inadequada na quebra e na despeliculagem da castanha (problemas de coluna), falta de luvas (perda das digitais), estrutura inadequada da tenda, entre outros".

Assim, o grupo idealizou uma chaminé e um forno resistente a altas temperaturas que canalizasse a fumaça até a parte superior do telhado. Também sugeriu o trabalho da quebra da castanha em uma mesa de madeira e com cadeiras, lugar de sacos e colunas usados como apoio. Isso serviu de base para que a cooperativa mais tarde desenvolvesse seu próprio local de trabalho, seguindo métodos semelhantes.

"Hoje em dia é outra coisa. A gente trabalha sentado, com postura, e o pessoal tem proteção", conta Silva.

Para retirar a amêndoa da castanha, é preciso assá-la. Depois, é preciso quebrar a castanha e retirar essa amêndoa. O último processo é limpar a amêndoa, tirando uma espécie de "segunda pele".

Quando era criança, a mãe de Silva fazia a queima da castanha dentro de uma lata, assando até que ficasse escura, sem proteção da fumaça que saía delas. O fogo era apagado com areia. O segundo processo, da quebra, era feito debaixo da árvore, com a família sentada no chão, cada um com um pedaço de madeira na mão que batia em cima de uma pedra. À tarde, a família fazia o terceiro processo, despelando as castanhas em cima de uma bacia. Depois, limpavam as amêndoas com um pano em uma peneira, e o produto era colocado em um saco grande e levado para a feira.

Na cooperativa, o processo era completamente diferente. A queima ali é feita em um forno por um trabalhador com EPI (equipamento de proteção individual). Estufas sugam a fumaça, que é filtrada antes de ser expelida no ar. Para apagar o fogo, usa-se água. As castanhas, então, são distribuídas em mesas e quebradas e abertas por uma máquina.

A castanha depois vai para uma estufa, "para ficar mais sequinha e crocante", explica Silva, e para o segundo processo, que é o de tirar a segunda pele. Essa parte é feita manualmente, por trabalhadores da cooperativa. Por fim, em um terceiro galpão, a castanha é limpa, e empacotada assim ou então feita doce, salgada ou apimentada antes.

A cooperativa compra um saco de 50 kg de castanha, antes de ser beneficiada, por cerca de R$ 240. Processados, esses 50 kg viram 10 kg de amêndoa de castanha de caju. O quilo, então, é vendido por cerca de R$ 40.

Repercussão regional

A cooperativa reverberou no resto da comunidade. Para Diana Mendonça de Carvalho, "a minifábrica deu uma expressão para que o Carrilho fosse reconhecido".

"Deu visibilidade à castanha e o Carrilho se tornou um ponto de turismo. Quem vem fazer rota do Sertão, saindo de Aracaju, acaba tendo a curiosidade de adentrar o Carrilho, conhecer a logística do beneficiamento e fazer a compra direta da castanha", diz. Ela conta que o poder público também construiu esgotamento sanitário, calçamento e inaugurou um monumento de uma castanha gigante em uma praça para demarcar o Carrilho como a terra da castanha. Hoje, ela conta, o time de futebol do povoado chama-se Castanha Futebol Clube, e uma festa, chamada "Castanha Fest", celebra a vocação do povoado.

Embora haja famílias no povoado que ainda trabalham de forma 100% artesanal, a cooperativa lhes deu uma "base para questionar o valor do produto que vendem", diz Silva. "As pessoas podem questionar: 'Você compra por X na cooperativa, por que o senhor não quer me pagar esse valor?'. Tem toda uma moral que a cooperativa construiu. Valorizamos um produto e um trabalho que eram desvalorizados."

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