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Que poder terá Cristina Kirchner, vice do novo presidente da Argentina (e o que acontece com os processos contra ela)

Veronica Smink - Da BBC News Mundo na Argentina

10/12/2019 09h37

Ex-mandatária terá como função principal presidir o Senado, mas alguns especulam se novo presidente não será seu 'marionete'.

É incomum, ao longo de um mandato, que o foco de atenção esteja não na figura do presidente prestes a assumir o mandato, mas sim no de seu vice. Mas esse é o caso na Argentina: a ex-presidente Cristina Kirchner volta ao poder nesta quarta-feira (10/12), quatro anos depois de deixá-lo, só que agora como vice de Alberto Fernández.

Desde que Cristina causou surpresa ao anunciar que não se candidataria à eleição presidencial, abrindo caminho para seu ex-chefe de gabinete, muitos passaram a se perguntar como será a dinâmica dela com Fernández, com quem teve uma vitória eleitoral contundente em 27 de outubro.

Na teoria, sua função principal é clara: na Argentina, cabe ao vice-presidente do país presidir o Senado.

Embora o vice só possa votar na Casa em caso de desempate, muitos apostam que o cargo dará a Cristina certo protagonismo e um palanque para se expressar.

Para além disso, qual será seu poder real? E o quanto influenciará nas decisões de governo?

O tema mobiliza a imprensa local, que tem feito todo o tipo de especulação sobre o tema.

Há quem esteja convencido de que Cristina manipula Fernández como um marionete. Afinal, alegam, não é comum que parta da candidata à vice-Presidência o anúncio de quem será seu companheiro de chapa.

Quem sustenta essa teoria cita fatos que indicariam que é ela quem mandaria na dupla presidencial. Por exemplo, na noite da vitória eleitoral, quando alguns governadores peronistas viajaram a Buenos Aires para participar dos festejos no bunker da campanha não foram autorizados a subir ao palco ? e, segundo jornalistas que acompanharam a campanha, isso aconteceu "por ordens de Cristina".

Esses mesmos repórteres informaram que os principais encontros entre Cristina e Fernández aconteceram em locais associados à ex-presidente, como seu apartamento, o que críticos veem como um sinal de "obediência" do "albertismo" ao kirchnerismo.

Em resposta, Fernández tem dito que essas conjecturas não se sustentam e mais de uma vez disse que será ele próprio quem terá as rédeas do poder.

"O presidente serei eu", repetiu quando era questionado a respeito.

O certo é que, para além de reuniões e negociações políticas, que são parte de qualquer coalizão governamental, Fernández foi, de fato, protagonista da campanha eleitoral.

Cristina praticamente não participou de comícios e chegou a passar longos períodos fora do país, visitando sua filha em Cuba, onde faz um tratamento médico.

A ex-presidente só fez comentários à imprensa ? quase sempre polêmicos, como de costume ? durante as apresentações públicas que fez de sua recém-lançada biografia, Sinceramente.

"Eu não sou a Cristina"

A relação entre Cristina e Fernández tampouco sempre foi tranquila.

"Foi um mau governo", disse em Fernández em 2015, ao comentar o fim do segundo mandato de Cristina. "Toda a intromissão dela na Justiça foi deplorável."

Naquela época, os dois eram rivais, e Fernández havia se convertido em um dos principais críticos de sua ex-chefe, a quem servira como chefe de gabinete durante sete meses, antes de renunciar, em 2008.

Depois do anúncio, em maio passado, de que ambos encabeçariam a aliança peronista-kirchnerista Frente de Todos, Fernández tentou distanciar-se das ações mais questionadas de sua agora colega de chapa ? por exemplo, a intervenção estatal sobre o Indec (equivalente argentino ao IBGE), que a partir de 2007 passou a publicar dados e medições amplamente questionados.

Fernández afirmou se opor à manipulação de dados estatísticos e inflacionários e, quando questionado sobre atos polêmicos da ex-presidente, respondeu: "Eu não sou a Cristina".

Processos judiciais

Ao mesmo tempo, ele abertamente defende sua vice na dezena de acusações de corrupção que Cristina enfrenta desde que deixou a Presidência.

Seis desses processos têm avançado na Justiça argentina, entre eles a acusação de que Cristina teria favorecido um empresário ? apontado como testa de ferro de seu marido, o também ex-presidente Néstor Kirchner ? em licitações públicas. Outra ação acusa Cristina de encabeçar uma associação ilícita que lavava dinheiro por meio de um hotel pertencente a ela em sociedade com os filhos, Florencia e Máximo Kirchner.

A ex-presidente também é acusada de encobrir um caso muito sensível à opinião pública argentina, o chamado "Memorando de entendimento com o Irã".

Trata-se de um acordo firmado com Teerá em 2013 com a suposta intenção de fazer avançar a investigação do pior atentado da história da Argentina: o ataque a bomba contra a associação israelita Amia, que deixou um saldo de 85 mortos em Buenos Aires em 1994.

Em janeiro de 2015, o promotor especial do caso Amia, Alberto Nisman, denunciou Cristina ? na época presidente ?, seu chanceler e outros funcionários de governo, acusando-os de usar o "memorando" para exonerar funcionários iranianos suspeitos de estar por trás do atentado.

A morte de Nisman, cinco dias mais tarde e horas antes dele ampliar sua denúncia perante o Congresso argentino, deu nova magnitude ao caso.

Cristina nega todas as acusações contra si, dizendo-se vítima de uma perseguição política impulsionada pelo governo (recém-terminado) de Mauricio Macri.

Ela cita como exemplo o fato de que oito de seus processos foram conduzidos pelo mesmo juiz.

O que diz Alberto Fernández?

Alberto Fernández, foi, na época, crítico ao "memorando de entendimento com o Irã", chamando-o de "deplorável", mas defendeu publicamente sua vice das acusações de corrupção.

Em maio, pouco depois de ser anunciado como cabeça de chapa por Cirstina, ele criticou os juízes que encaminham os processos contra ela e defendeu que se "revisem as muitas sentenças proferidas nos últimos anos" ? em referência a dezenas de processos iniciados em 2015 contra ex-funcionários kirchneristas.

A maioria deles foi detida preventivamente, algo que foi criticado por Fernández, que é advogado e professor de Direito.

No início de novembro, durante conferência em uma universidade, Fernández comparou Cristina a outros líderes "progressistas" da América Latina que também enfrentam processos na Justiça.

"(O ex-presidente Rafael) Correa no Equador, Lula no Brasil e Cristina, na Argentina, todos são vítimas de um sistema judicial articulado para perseguir líderes populares", declarou, afirmando que sua vice é "sistematicamente ameaçada".

Para alguns analistas, declarações como essa ? vindas de alguém que em determinado momento foi tão crítico a Cristina ? são parte de um acordo privado entre a presidente e sua vice.

O jornalista político Martín Rodríguez Yebra, do jornal argentino La Nación, afirmou que nisso consiste a "letra pequena do contrato entre Cristina Kirchner e Alberto Fernández". Por enquanto, porém, faltam evidências para sustentar tal afirmação.

O que acontecerá com os processos judiciais?

Para além das especulações, o concreto é que o foro privilegiado tem evitado a prisão de Cristina ? primeiro como senadora e agora como vice-presidente ?, contra quem existiam pedidos de prisão preventiva.

Ela só perderia o foro por decisão de dois terços do Senado, algo improvável de acontecer, uma vez que o peronismo conquistou maioria na Casa nas últimas eleições.

Sobre os processos em si, a maioria dos analistas consultados pela BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) acredita que eles provavelmente serão arquivados, assim como a maioria das acusações de corrupção que recaíram contra ex-governantes, que se estendiam por tanto tempo que acabavam prescrevendo.

Confirma essa percepção a informação de que sete ex-funcionários do kirchnerismo que estavam detidos por casos de fraude, pagamento de propina e lavagem de dinheiro foram libertados nas semanas seguintes à vitória de Fernández e Cristina nas urnas.

E, dois dias depois da eleição em outubro, a Câmara Federal revogou a acusação contra Cristina em dois dos processos em que ela era investigada.

No sentido contrário, há sinais de que, pelo menos por enquanto, alguns processos judiciais contra ela seguem seu curso natural.

O mesmo tribunal que anulou duas acusações contra ela confirmou um terceiro processo, em que Cristina é acusada de formação de cartéis em obras públicas.

E, no último 2 de dezembro, uma semana antes de assumir como vice, Cristina teve de depor em outra acusação contra si. Foi a primeira vez na história argentina que um vice-presidente eleito depôs perante a Justiça.

Para muitos argentinos, o destino de grandes nomes do kirchnerismo que foram condenados nos últimos quatro anos servirá de demonstração de como a Justiça agirá perante o novo governo.

Tanto Amado Boudou, ex-vice de Cristina, como Julio de Vido, ex-ministro de Planejamento e mão direita da ex-presidente, receberam penas de mais de cinco anos de prisão por corrupção.

Ambos estão detidos sob prisão preventiva, uma vez que na Argentina, à semelhança do que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Brasil, o réu só é preso quando seu caso transita em julgado, ou seja, quando todos os recursos são esgotados.

E, assim como aqui, a prisão preventiva é alvo de questionamentos por lá, inclusive por parte do novo presidente, Alberto Fernández.

Eventuais decisões relacionadas à prisão preventiva de Boudou e De Vido certamente gerarão, de um lado, aplausos e, de outro, questionamentos sobre a independência da Justiça.


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