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Galpão dos Correios em NY vira 'front' da guerra ao opioide fentanil

18/10/2019 15h35

Nova York, 18 Out 2019 (AFP) - Um imenso e antigo galpão sem janelas em Nova York, que recebe diariamente mais de um milhão de pacotes e cartas do mundo todo virou uma das frentes da guerra ao fentanil, o opioide sintético mais mortífero, que mata milhares de americanos por ano.

Nos Estados Unidos, os opiáceos provocam 130 mortes por dia e 32 mil pessoas morreram em 2018 em função do consumo desse tipo de opioide.

No centro internacional dos correios no aeroporto JFK, de Nova York, que recebe 60% da correspondência que chega ao país, dezenas de oficiais da CBP - a agência de Alfândega e Proteção de Fronteiras - examinam pacotes dia e noite em busca de drogas.

Buscam, sobretudo, o fentanil fabricado ilegalmente, um opioide sintético até 50 vezes mais potente que a heroína e até cem vezes mais forte que a morfina e que também é receitado legalmente como analgésico.

"É como encontrar agulha num palheiro", explica um agente neste enorme armazém iluminado por lâmpadas fluorescentes.

Segundo cifras provisórias do Centro para o Controle e a Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, só em 2018 cerca de 32.000 pessoas morreram de overdoses ligadas a opioides como o fentanil, o que corresponde a 46% de todos os óbitos provocados por overdose no país.

- Entrega a domicílio -A grande maioria do fentanil apreendido nesta central dos Correios ou drogas análogas - com efeito similar, mas estrutura molecular diferente - foi comprada pela "dark web", sobretudo da China.

Os usuários em geral pagam com criptomoedas ou até mesmo com um simples cartão de crédito ou conta PayPal.

Exigindo uma droga cada vez mais pura, "podem encomendar o fentanil diretamente da China e pedir que a entreguem em casa", explica à AFP Ray Donovan, chefe da Drug Enforcement Administration (DEA), a unidade antinarcóticos da polícia federal, para a região de Nova York, que começou sua carreira na patrulha fronteiriça de San Diego.

Em meio a milhares de cartas e pacotes, o agente da CBP Robert Redes, que trabalha no aeroporto JFK há mais de 15 anos e agora é chefe de divisão, lembra especialmente de um inocente cartão musical enviado de Toronto, Canadá, e examinado em março de 2018.

No mecanismo musical, escondia três gramas de fentanil - quantidade suficiente para matar 1.500 pessoas.

A descoberta da droga levou à prisão de um homem de 34 anos em Easton, Pensilvânia, que já tinha feito outras compras ilegais pela "dark web" e que escondia em seu apartamento um pequeno estoque de 500 comprimidos de Xanax, LSD, ecstasy, maconha e cogumelos alucinógenos.

Como os pacotes que chegam da China são mais suspeitos, muitas vezes a droga é enviada antes a países terceiros e dali viaja aos Estados Unidos, explica Donovan, que na DEA supervisionou as duas últimas capturas do ex-chefão do poderoso cartel de Sinaloa, Joaquín "Chapo" Guzmán, sentenciado em Nova York à prisão perpétua em julho.

É impossível revistar toda a correspondência internacional que chega ao JFK. Com a ajuda de cães treinados, a CBP examina diariamente mil pacotes considerados de alto risco, sobretudo com base em informação de Inteligência.

Os mais suspeitos são examinados com raios-X e tecnologia a laser e às vezes abertos a faca cuidadosamente, pois inalar apenas alguns miligramas de fentanil pode ser fatal.

Diferentemente das apreensões de cocaína ou heroína, medidas em quilos, "as quantidades de fentanil que chegam pelo correio são pequenas, compradas pela Internet, mas de alta pureza, ainda não cortadas na rua", diz Redes.

Uma das ferramentas mais poderosas dos agentes alfandegários é um espectrômetro com tecnologia a laser conectado a uma "biblioteca" de drogas digital, que permite identificar mais de 450 substâncias controladas sem abrir a embalagem.

Mas a produção de novas substâncias análogas - que substituem rapidamente as proibidas pelo governo chinês - requer a atualização permanente destas "bibliotecas".

"É um esforço constante estar em dia com a última mistura análoga", afirma Redes. "Pode parecer assustador. O que no fim pode nos dar a vitória é a tecnologia", não mais agentes, avalia.

O governo americano convocou, inclusive, um desafio mundial para criar uma nova tecnologia que detecte rapidamente opioides no correio internacional, com prêmio de 1,55 milhão de dólares.

- "A droga perfeita" -Diferentemente dos pacotes enviados por empresas como DHL, FedEx e UPS, o serviço postal americano ainda não tem rastreamento eletrônico para 40% da correspondência internacional, o que dificulta o trabalho. Uma lei federal exige este acompanhamento para 100% dos pacotes internacionais até o fim de 2020.

Alta e elegante, Bridget Brennan trava uma batalha contra o narcotráfico há 20 anos, como promotora especial antinarcóticos de Nova York. Viu sucederem-se, uma após a outra, epidemias de cocaína, crack, heroína e agora fentanil.

"O que posso dizer com grande confiança é que as pessoas que compram drogas nas ruas não têm ideia do que estão comprando. São comprimidos que dizem ser oxicodona e são fentanil, os traficantes lhes dão saquinhos e dizem que é heroína, mas pode ser um análogo do fentanil. Às vezes nem mesmo o traficante sabe o que está vendendo", adverte.

Em seu antigo escritório, situado perto de Chinatown, garante que para os traficantes, "o fentanil é o produto perfeito".

Produzir heroína a partir da papoula na Sierra Madre, no México, e transformar a pasta em droga refinada leva uns quatro meses.

Produzir um quilo de fentanil em um laboratório exige menos mão-de-obra, é muito mais rápido porque não se está sujeito às inclemências do clima e custa dez vezes menos que produzir heroína: de 5.000 a 10.000 dólares no México, diz Brennan, que foi jornalista antes de entrar no mundo das leis.

O fentanil é tão poderoso que de um único quilo pode-se obter meio milhão de comprimidos, que podem ser revendidos nas ruas dos Estados Unidos entre 8 e 10 dólares cada um.

"Um quilo de fentanil comprado na China por 3.000 a 5.000 dólares pode gerar lucros de mais de 1,5 milhão de dólares no mercado negro", estimou Matthew Donahue, diretor da DEA para a América do Norte e América Central, em declarações a um comitê do Congresso em julho.

- 300.000 mortos em 20 anos -O fentanil, que também pode ser fabricado legalmente em laboratórios farmacêuticos, está no centro da crise de opioides nos Estados Unidos.

A epidemia da droga teve início no final dos anos 1990, com a prescrição abusiva e estimulada pela indústria farmacêutica de medicamentos opioides para a dor, a começar pela oxicodona vendida no país pelo laboratório Purdue com o nome OxyContin. Até então, este tipo de remédio era reservado ao tratamento de doenças graves, devido à forte dependência que produz.

Ao fim do tratamento, estima-se que de 8% a 12% dos pacientes se tornem dependentes e muitos começam a comprar medicamentos opioides vendidos ilegalmente ou até mesmo heroína e outras drogas à base de ópio mais fortes, como o fentanil.

Foi assim que o astro pop Prince morreu em 2016, de overdose do medicamento Vicodin (combinação de hidrocodona e paracetamol), fabricado ilegalmente e polvilhado com fentanil, talvez sem saber que estava consumindo droga.

Segundo as últimas cifras oficiais publicadas no começo de outubro, mais de 300.000 pessoas morreram de overdose de opiáceos desde o começo dos anos 2000, com uma explosão na taxa de mortalidade entre 2013 e 2017.

- China e México, os fornecedores -A China foi o primeiro fabricante de fentanil destinado ao mercado americano. Mas o tráfico via México, comandado sobretudo pelo cartel de Sinaloa e o poderoso e mais global cartel Jalisco Nova Geração, começou por volta de 2005, quando os colombianos se descartaram os mexicanos e começaram a exportar eles mesmos a cocaína para Europa, Austrália, Rússia e China, explica Donovan.

Para compensar esta perda de mercado, os cartéis mexicanos começaram a produzir mais papoula e tentar imitar a potente heroína colombiana. Mas como não conseguiram, começaram a importar fentanil da China para incrementar a droga e torná-la mais potente e competitiva.

Depois da primeira recaptura de 'El Chapo' no México em 2014, seus filhos e sócios "começaram a criar mais laboratórios de fentanil e a contrabandear mais fentanil aos Estados Unidos para ganhar mais dinheiro", conta Donovan, que em seu escritório tem pendurada na parede, emoldurada como um troféu, a camisa bege, ainda suja, que o chefão de Sinaloa vestia no dia em que foi extraditado para Nova York.

Posteriormente, para diminuir os custos e evitar as leis chinesas, começaram a importar os insumos químicos com os quais se produz o fentanil e elaborá-los eles mesmos em laboratórios clandestinos.

Pressionada pelo presidente Donald Trump, que declarou a crise dos opiáceos como uma emergência de saúde pública em 2017, tendo como pano de fundo a guerra comercial, a China mudou de política em maio e, ao invés de incluir os análogos do fentanil um a um na lista de substâncias controladas, como era seu costume, proibiu todos como um grupo.

Mas isto não inclui muitos insumos necessários para fabricá-lo, e o México "pode preencher este vácuo" chinês, alertou Donahue no Congresso.

Donahue explicou aos legisladores que os cartéis mexicanos estão começando a fabricar eles mesmos os precursores do fentanil "um desenvolvimento alarmante".

- Máfias dominicanas e chinesas em NYC -As apreensões de fentanil na central dos correios do JFK estão em queda. As autoridades asseguram que a maior parte da droga entra pelos portos de entrada oficiais na fronteira com o México.

Geralmente com uma pureza de 10%, misturado a solventes ou outras drogas como heroína, metanfetamina ou até cocaína, ou prensado em forma de pílula azul, imitando o OxyContin, o fentanil entra escondido em automóveis ou é traficado por pedestres.

O diretor-executivo a cargo da CBP, Thomas Overacker, disse ao Congresso em julho que só consegue revistar 1% das dezenas de milhares de veículos particulares e 16% dos comerciais que entram todos os dias em portos de entrada oficiais na fronteira entre os dois países.

As apreensões, no entanto, estão em alta: no ano passado, a CBP apreendeu em todo o país 985 kg de fentanil ilegal e 25 kg de seus análogos. Em 2013 menos de um quilo foi apreendido.

Donovan, que cresceu no Bronx, assegura que em Nova York quem distribui o fentanil são, sobretudo, organizações criminosas dominicanas, que depois repassam os lucros a máfias chinesas de lavagem de dinheiro, associadas a cartéis mexicanos e cada vez mais presentes no México.

Os Estados Unidos travam uma guerra de meio século contra as drogas, mas com o fentanil enfrentam a ameaça mais mortal de sua história.

A DEA assegura que é necessário prosseguir esta luta, "que levará gerações", garante Donahue, embora o governo federal admita que se deve investir em outras frentes não repressivas, como o tratamento dos dependentes e a gestão da dor.

Um exemplo é o orçamento recorde anunciado em setembro pelo Instituto Nacional de Saúde (NIH), o principal centro federal de pesquisas médicas, para um programa dedicado à dependência de opiáceos: quase um bilhão de dólares.

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