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França: oposição a barriga solidária coloca feministas e conservadores no mesmo lado

13/09/2019 12h20

A França se prepara para votar a atualização das leis de bioética e a delicada questão da chamada barriga solidária ou gestação compartilhada estará na pauta. A exemplo da Alemanha e da Itália, a França proíbe que uma mulher ofereça o útero para realizar o sonho de terceiros de se tornarem mães ou pais. A prática é tão polêmica no país que reúne, num mesmo lado, militantes feministas e ultraconservadores religiosos, ambos contrários à legalização do método, embora por razões diametralmente distintas.

O governo francês assegura: a "barriga de aluguel", como costumava ser chamada, vai continuar proibida, apesar do aumento do apoio à prática junto à opinião pública. Uma pesquisa do Instituto Ifop publicada nesta sexta-feira (13) mostrou que 66% dos casais heterossexuais e 50% dos homossexuais são favoráveis à legalização, um recorde. As discussões parlamentares sobre o tema devem abordar apenas a questão do reconhecimento jurídico de filhos de franceses gerados por mulheres em outros países.

Na Europa, Reino Unido, Holanda, Bélgica e Dinamarca são alguns dos que toleram a barriga solidária, desde que não envolva a remuneração da mulher que concordou em gerar o bebê. Apenas os custos ligados à gravidez, como roupas e prejuízos salariais, podem ser reembolsados. O objetivo é evitar a comercialização de bebês.

Para a maioria das organizações feministas francesas, este é o centro da questão: "nem para vender, nem para pegar - o corpo das mulheres não é uma mercadoria". O slogan que elas defendem desde as primeiras manifestações, na década de 1970, permanece intocável, ainda que agora bata de frente com entidades de defesa dos direitos dos homossexuais. O movimento gay é um dos que mais pressiona pela autorização da gestação compartilhada.

"O movimento feminista, que sempre lutou pela igualdade de todos e todas e contra as violências contra as mulheres, só pode ser crítico e abolicionista a respeito da barriga solidária", afirma Marie-Josèphe Devilliers, copresidente da Coalizão Internacional pela Abolição da Maternidade por Substituição (CIAMS) e da organização lésbica e feminista CQFD Lesbiennes féministes. A CIAMS reagrupa 21 entidades feministas e de direitos humanos que militam pelo fim da barriga de aluguel no mundo, por avaliar que a prática instrumentaliza o corpo da mulher, ao resumi-la a uma reprodutora.

Necessidade de procriação - uma pressão social

Devillers propõe algumas pistas de reflexão para encarar a questão dos casais hétero ou homossexuais que precisariam da ajuda de uma terceira pessoa para receber a gestação. Em primeiro lugar, sobre a própria necessidade de ter filhos. Segundo a militante, as pressões social e cultural impostas nas "sociedades conservadoras e patriarcais" levam os casais a se sentirem obrigados a procriar - embora, para muitos, o desejo de maternidade ou paternidade sequer seja autêntico.

"Há uma ignorância proposital sobre os riscos que uma gravidez sempre gera para a saúde das mulheres. É grave, injusto, desumano fazer uma mulher assumir tantos riscos apenas para realizar esse desejo dos outros", explica.

Correntes liberais do feminismo, entretanto, preferem a premissa do "meu corpo, minhas regras", segundo a qual a mulher é livre para fazer o que bem entender com o próprio corpo. A respeitada filósofa Elisabeth Badinter é uma das raras vozes a se pronunciar publicamente em favor da barriga solidária. À revista Elle, ela declarou que "a questão do princípio é essencial: uma mulher tem o direito de fazer o que quiser com o seu corpo, quando ela tem plena consciência sobre os atos? Para mim, a resposta é sim".

Remunerar ou não?

Badinter prega o método praticado na Inglaterra e no Brasil, com regras claras enquadradas pelo Estado e sem prever a remuneração das mulheres que engravidam. "Tão logo há dinheiro envolvido, há outros interesses em jogo. Mafiosos e até maridos forçam as mulheres a portar o filho de outros por dinheiro. O pior dos riscos é que uma mulher seja forçada a fazer isso, ou a faça contra a própria vontade", indicou Badinter.

O tema da remuneração é um dos mais polêmicos. Devillers é cética quanto a esse puro altruísmo desenhado por Badinter. Ela argumenta que a única a abrir mão da contrapartida financeira seria a mulher, justamente a que suporta a parte mais difícil do "serviço". Clínicas, médicos e advogados envolvidos na gestação não deixarão de cobrar para concretizar o projeto dos casais, destaca.

O think thank liberal Générations Libres publicou, por sua vez, um estudo no qual avalia que a legalização da GPA (sigla francesa para "gestação por terceira") se inscreve nos direitos das mulheres como a continuidade do acesso à contracepção e ao aborto, obtidos há mais de 40 anos na França.

"A GPA é a forma mais feminista de reprodução não só porque reafirma o direito das mulheres de fazer o que quiserem com elas mesmas, mas também porque lhes permite colocar um preço em um trabalho efetuado gratuitamente", diz o texto, em defesa da "parentalidade para todos". "Em matéria de gestação, as mulheres conservam o monopólio e deveriam ser sempre ganhadoras. No entanto, a proibição da barriga de aluguel continua a beneficiar os homens do meio reprodutivo, em detrimento das mulheres", avalia o jurista e pesquisador Daniel Borillo, no prefácio do documento.

Avanços na adoção

Para que os avanços no tema sejam reais, Marie-Josèphe Devillers considera ser necessário lutar por mais igualdade na adoção de crianças por casais homossexuais. Ela argumenta que as barreiras para adotar são a principal razão que leva os gays a reivindicar a legalização das barrigas de aluguel. A abolicionista lamenta que, por um certo individualismo, feministas e homossexuais tenham adotado caminhos distintos nessa questão. "O movimento gay, que sempre foi contra os controles sociais e as ordens morais, se tornou integracionista neste assunto. Eles reclamam direitos pessoais e abandonam os combates mais universalistas", aponta.

A feminista ainda evoca um terceiro ponto: a importância da filiação biológica. "Por que esse DNA, veiculado pela procriação, é tão importante assim para mim? Os meus são melhores? Acho que as pessoas que buscam a gestação compartilhada não pensaram muito no que essas questões representam", comenta.

Oposição por religião

A militante refuta, porém, a ideia de que, neste tema, as feministas estão do mesmo lado que ultraconservadores religiosos. Os católicos da Manif Pour Tous, por exemplo, brigam pelo fim do casamento gay e a adoção por homossexuais.

"Os movimentos de extrema direita se opõem em nome da sacrossanta família patriarcal. O homem que ganha o pão, a mulher que cuida da casa, e papai e mamãe que fabricam crianças com a bênção da Igreja Católica", frisa. "A posição das feministas é o oposto: pela igualdade das sexualidades e a autonomia das mulheres, que são pessoas completas, com liberdade de aborto e de contracepção."

Atualmente, toda pessoa que participe ou intermedeie uma gestação compartilhada na França é sujeita a € 7,5 mil de multa e seis meses de prisão. Em março, pela primeira vez, um site espanhol veiculado na França, que oferecia o caminho para a concretização da barriga de aluguel, foi condenado pela Justiça francesa.

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