Topo
Notícias

Já rejeitamos até café e geladeira, por que temos tanto medo da inovação?

Você acha que o mundo está perdido? É só o seu apego... - Getty Images
Você acha que o mundo está perdido? É só o seu apego... Imagem: Getty Images
do UOL

Matheus Pichonelli

Colaboração para Tilt, em São Paulo

23/08/2019 04h00

Sem tempo, irmão

  • A humanidade já rejeitou café, geladeira, micro-ondas e até telefones fixos
  • Para analista, IA, nanotecnologia e biotech devem ser os próximos alvos
  • Inovações assim causam um grande impacto no modo de vida, e isso dá medo
  • As pessoas que detém os saberes também temem perder esse "patrimônio"
  • O apego às velhas tecnologias é como o que temos por antigos amores
  • Prestamos homenagem aos sacrifícios que fizemos por uma tecnologia

Quando chegou às xícaras das melhores famílias na Itália, no século 17, o café era chamado de "bebida de Satã". Três séculos depois, tinha a má alcunha de "álcool dos jovens" na Índia, enquanto, ingleses, franceses e alemães, embriagados de apego pelo chá, associavam a bebida à esterilidade. Nos primórdios, muita gente se negava a comer produtos refrigerados por parecer "comida embalsamada". Já o telefone foi chamado de "instrumento do diabo", e a margarina, de "manteiga de touro". Tudo isso muito antes da sua avó dizer, no fim dos anos 1980, que era bom evitar o forno micro-ondas para evitar a contaminação radioativa de nossas lasanhas congeladas.

Exemplos como os acima ilustram o livro "Innovation and Its Enemies: Why People Resist New Technologies" [Inovação e Seus Inimigos: por que as pessoas resistem às novas tecnologias, na tradução livre], publicado em 2016. Nele, o autor Calestous Juma (1953-2017), especialista em inovação e cooperação internacional da Universidade Harvard (EUA) que chefiou a Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas, analisou o impacto (e as reações) da tecnologia ao longo de 600 anos.

E a conclusão foi: não é a novidade que assusta as pessoas, mas a perda que ela representa. Porque falar em inovação, desde sempre, é falar em mudanças na identidade, no modo de vida ou na segurança econômica, explica Juma.

Esse padrão de resistência continua até hoje, como sabemos —especialmente agora que a velocidade das mudanças é atordoante. E o principal motivo é o cheirinho de revolução que as tecnologias já espalham.

Para Thiara Cavadas, que lidera o departamento de pesquisa da Envisioning, consultoria que mapeia tecnologias emergentes para estudos sobre o futuro, existem três grandes tecnologias que já dão pinta do impacto profundo que trarão para o status quo e que, por isso, já causam resistência.

  1. Inteligência artificial/robótica, que devem facilitar nossas rotinas, mas vão impactar nossa liberdade de escolha, cada vez mais influenciada por aplicativos que ajudam a selecionar de vinho a dates no sábado à noite;
  2. Nanotecnologia, que possibilitará avanços como "chipar" produtos que consumimos até inserir mini-robôs no nosso sistema sanguíneo;
  3. Biotech, que promete mudar desde a forma como produzimos novos produtos até nosso DNA.

O terceiro item, por exemplo, deve impactar até a noção que temos de comércio internacional. Afinal, se em breve será possível alterar a constituição de alimentos, plantar em qualquer território e modificar sua semente para se adaptar a qualquer clima, por que alguém importaria seus similares cultivados do outro lado do Atlântico? Assinatura de tratados de livre-comércio entre dois grandes blocos comerciais pode simplesmente não mais acontecer.

A pergunta do futuro, segundo Cavadas, não é como ou quais as tecnologias vão surgir nem em que velocidade, "mas a sua aceleração ou velocidade em relação a ela". Ou seja, o que importa é se você (ou a geração futura) vai acompanhar e se adaptar.

Cavadas lembra que as pessoas jurídicas também têm essa dificuldade em se adaptar, e o nó da inovação é justamente a rapidez das transformações:

  • ou as empresas são grandes e pesadas demais para se mover na velocidade exigida pelas mudanças;
  • ou são pequenas e médias e contam com poucos recursos para arriscar;
  • ou estão presas a um pensamento de curto prazo, visando o próximo trimestre.

"Não dá para olhar só para os comportamentos ou novidades. É preciso olhar para onde estão indo as ideias. Todo futuro feito a partir de ideias", diz.

O futuro ainda te choca? E o presente?

No início dos anos 1970, o sociólogo Alvin Toffler analisou a velocidade das mudanças no livro "Future Shock", cujo título (em português, "Choque do presente") se tornou uma definição sobre estados psicológicos em relação a inovações.

"Ele previa que em algum momento a gente ia perder a capacidade de se adaptar", lembra a especialista. "Essa situação nós já vivemos. Não estamos mais chocados com o futuro, mas com o presente", diz ela. As ideias de Toffler foram atualizadas no livro "Present Shock", de Douglas Rushkoff, para quem as mídias digitais aboliram a ideia de amanhã.

Chegar em casa e falar com as paredes não será um sintoma de desarranjo, como os mais antigos falavam: 'Ih, fulano está falando com as paredes, ih, coitado, pirou'
Luiz Alberto Oliveira, físico e curador-geral do Museu do Amanhã

"Ao contrário estranho será se nós não conversamos com a parede, com a geladeira, com a batedeira, com o micro-ondas. A geladeira sozinha vai saber que está faltando suco de laranja e vai telefonar para o mercado", resumiu o Oliveira, em palestra recente.

O físico ressalta que uma tecnologia como o arado pesado, que aumenta a produção com a ajuda de bois, demorou 700 anos para ir da China para a Espanha. "Ao contrário de épocas em que o conhecimento se capilarizava lentamente, hoje o conhecimento explode incessantemente. Ninguém será capaz de ter conhecimento sobre tudo o que é publicado em física em um dia, é impossível", exemplifica. "A mudança hoje se dá num ritmo que, devido à mediação técnica, pode alcançar um limiar, alcançar um valor que antes não podia acontecer."

Domínio do saber no divã

A resistência a mudanças também tem base na psicanálise, e a assimilação de novas técnicas é um problema central da transmissão cultural. Segundo o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP, "resistimos porque todo discurso é um sistema que tende a se repetir, gerar entropia e permanecer em sua estrutura de lugares e poderes".

"Dominar saberes não é apenas uma obra de curiosidade e prazer que advém da ampliação da capacidade de ação sobre o mundo. Ela é feita de sacrifícios e interiorização de regras que tem um custo subjetivo", analisa:

Uma vez adquirido este saber, nós tendemos a achar que ele é uma espécie de patrimônio. Por isso não gostamos de descobrir que este patrimônio está, em certo sentido, em processo de desvalorização contínua

De acordo com o professor, quando uma nova tecnologia chega é como o anúncio de uma nova lei e, quando isso acontece em escala mais extensa ou contínua, estamos diante de uma nova forma de vida, que afeta nossos modos de linguagem, de desejo e de trabalho. "Por isso nos apegamos às velhas tecnologias como nos apegamos aos antigos amores e homenageamos os sacrifícios que por eles fizemos. Uma nova lei é também a perda e o luto sobre a antiga lei".

Dunker lembra que, no interior de São Paulo, havia até pouco tempo uma comunidade cuja produção girava em torno da produção de tijolos e telhas em uma antiga olaria. Novas técnicas tornariam este trabalho mais eficaz, menos doloroso e trariam ganhos potenciais para todos, como mostravam as aulas e intervenções feitas por pesquisadores da USP para apresentar as novas técnicas à população local. Eles receberam as instruções com simpatia e educação, conta Dunker, mas isso não se refletiu em verdadeiras transformações nos modos de fazer.

"A maneira de apresentar as novas técnicas, feitas por jovens universitários com suas linguagens, era sentida como uma afronta ao estilo de transmissão daquele fazer, que era passado de pai para filho. Receber a nova tecnologia não era apenas um problema de assimilar saberes, mas de romper com hierarquias e modelos de autoridades. Isso era sentido como uma espécie de ameaça."

Para ele, a exclusão de certas tecnologias é sentida como a confirmação de uma posição de identidade ou de classe, que nem sempre é fácil de aceitar.

"Imagine que cada tecnologia traz consigo gramáticas de prazer específicas: o sabor de um clique que abre uma tela, a intensidade de um videogame hiper-realista, a satisfação com um novo tipo de console ou uma plataforma mais 'amigável'. Tudo isso cria marcas que não são permanentemente renováveis. Permanecer em um discurso, alterá-lo e criar-se um novo universo de linguagem, de trabalho e de desejo implica na renovação completa de nossas formas de vida."

Assim como há uma resistência dos materiais, completa Dunker, há uma resistência da maleabilidade psíquica. "Ela pode variar de pessoa para pessoa, de cultura para cultura, de fase da vida em fase da vida, mas ela não é infinita", finaliza.

Anna Lucia Spear King, psicóloga, doutora em saúde mental e professora da pós-graduação em dependência digital, faz um paralelo entre a aceitação de novas tecnologias e a desconfiança inicial sobre seu uso —um caso clássico, afirma, são os aplicativos de transporte, que faziam as pessoas a se questionarem se seriam sequestradas. "Quando aprendem a usar, a baixar, e percebem que é fácil e barato, aí todo mundo gosta", diz.

Spear King é uma das fundadoras do núcleo Delete, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desde 2013, o grupo realiza, todas as sextas-feiras, triagens e avaliações psiquiátricas de quem desenvolve transtornos relacionados ao uso da tecnologia. Ela lembra que, quando os computadores de mesa chegaram ao mercado, muita gente tinha receio de mudar de hábitos. "As pessoas tinham medo de ligar, de deletar os arquivos."

Hoje, diz, temos dificuldade em acompanhar todas as mudanças, criamos dependência de especialistas para consertar equipamentos sobre os quais desconhecemos o funcionamento. Um dos transtornos comuns é a nomofobia, o medo de ficar sem celular ou aparelhos eletrônicos —que pode levar a ansiedade e angústia.

Segundo a especialista, porém, é preciso diferenciar a ansiedade com o surgimento de novas tecnologias com os transtornos desenvolvidos pelo uso excessivo dos aparelhos.

"Se for uma pessoa ansiosa por natureza, o celular se torna a representação de algo que já existe. Se ela for compulsiva, vai se viciar em compras, em sites de pornografia, etc. O uso tecnologia pode representar coisas que já existem em nós. Ela não cria nada."

SIGA TILT NAS REDES SOCIAIS

Notícias