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Como crise e volta da esquerda na Argentina afetariam o Brasil

Nathalia Passarinho - @npassarinho - Da BBC News Brasil em Londres

20/08/2019 14h51

A corrida presidencial na Argentina tem causado grande instabilidade econômica por lá.

Embora a eleição seja só no dia 27 de outubro, a disputa já provoca efeitos sobre o dólar, os juros e a bolsa de valores do país.

Mas qual será o impacto, para o Brasil, da tensão política na Argentina?

Nas eleições primárias, que funcionam como uma espécie de pesquisa eleitoral do primeiro turno, o atual presidente argentino, Mauricio Macri, apareceu 15 pontos percentuais atrás do candidato de esquerda Alberto Férnandez, que tem a ex-presidente Cristina Kirchner como vice na chapa.

O mercado reagiu mal e os principais indicadores econômicos do país se deterioraram de imediato.

Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a instabilidade na Argentina pode afetar o comércio exterior brasileiro, investimentos, o turismo e o dólar, mas em alguns desses setores o impacto é só uma "marolinha", enquanto, em outros, tem potencial para provocar prejuízos.

E, a depender da chapa que se eleger, as relações do Brasil com seu principal parceiro na América do Sul e maior importador de produtos industrializados brasileiros podem se deteriorar.

A crise lá impacta o valor do real frente ao dólar?

Assim que as prévias da eleição na Argentina, no dia 11 de agosto, apontaram vitória da chapa do peronista Alberto Férnandez, que é visto como candidato mais antimercado, o dólar disparou - passou dos 46 pesos para acima de 60 pesos argentinos.

E as ações desabaram numa queda histórica de 37,9% da bolsa de valores de Buenos Aires.

No mesmo dia, o real também perdeu valor frente ao dólar, mostrando que a reação negativa do mercado contagiou o Brasil. O dólar chegou a bater R$ 4 na manhã do dia 12 de agosto e fechou o dia a R$ 3,98.

A explicação para a subida do dólar no Brasil diante de um resultado que assusta o mercado é simples.

Quando o investidor avalia que o retorno das suas aplicações em fundos, ações ou títulos públicos não compensa o ambiente de alto risco, ele vende parte ou tudo, e transfere o dinheiro para países mais seguros.

Ou seja, abre mão de aplicações na Argentina e vai comprar títulos e ações nos Estados Unidos ou na Europa. Dólares, portanto, tendem a deixar o país em crise ou entrar em menor volume, fazendo com que haja menos oferta dessa moeda, o que pressiona a cotação.

Agora, por que o real perdeu valor também?

O pesquisador de economia aplicada Lívio Ribeiro, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), explica que, como o Brasil é integrante do Mercosul e vizinho da Argentina, acaba se contaminando com a percepção de aumento de risco na região.

Os investidores, no impulso, reagem retirando, também, aplicações do Brasil e da América do Sul como um todo.

"A gente tem o efeito financeiro que é a contaminação da classe América Latina. A gente tem observado isso nos últimos dias, com o dólar beirando R$ 4. A crise argentina nos atrapalha, ainda que seja responsável só por uma fatia dessa desvalorização do real", diz Ribeiro.

Mas esse efeito, até as eleições na Argentina, tende a ser passageiro e marginal, segundo o professor de Relações Internacionais Carlos Eduardo Vidigal, da Universidade de Brasília.

Passado o susto, os investidores devem fazer uma avaliação que considere o fator específico de risco de cada país.

"A oscilação da bolsa e do dólar é muito momentânea. Essa perda causada pela crise argentina tende a ser recuperada", diz Vidigal, que é autor de diversos livros sobre a relação entre Brasil e Argentina.

E qual o impacto no comércio?

Enquanto o impacto da crise argentina sobre o valor do real é limitado, os efeitos sobre o comércio exterior brasileiro são significativos, apontam os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

A Argentina é a maior compradora de industrializados brasileiros - mais de 90% dos produtos exportados pelo Brasil para o país vizinho são manufaturados.

E o setor automotivo, que responde pela maior fatia das nossas exportações para a Argentina (cerca de 30%), é o que mais sofre com qualquer problema econômico naquele país.

Mais de 60% dos carros comprados na Argentina vêm do Brasil, segundo dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) e do Ministério da Indústria e Comércio Exterior brasileiro.

Mas, com o agravamento da crise econômica, a pobreza aumentou, a inflação corroeu salários e os argentinos estão comprando menos carros e autopeças produzidos no Brasil.

A exportação de veículos brasileiros caiu 41% de janeiro a julho deste ano, "em função, principalmente, da crise", diz relatório da Anfavea.

No total, considerados todos os produtos comercializados, as exportações do Brasil para a Argentina sofreram queda de 43% de janeiro a julho deste ano, na comparação com 2018.

Em resumo, o nosso setor de exportação de manufaturados pode perder peso se a situação financeira da Argentina se agravar. E, com isso, o Brasil passa a ficar ainda mais dependente da venda de produtos básicos, como alimentos e minério.

Investimentos diretos

A instabilidade da semana passada na Argentina mostrou que, assustados com o resultado eleitoral, os investidores acabaram, num primeiro momento, retirando aplicações em títulos, ações e fundos brasileiros também.

Mas será que a crise na Argentina pode levar a uma queda significativa em investimentos diretos e de projetos estrangeiros no Brasil?

Ou seja, será que China, países europeus e os Estados Unidos vão pensar duas vezes antes de abrir uma empresa no nosso país ou investir em infraestrutura, por causa da instabilidade na Argentina?

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que não. Para eles, grandes investidores tendem a olhar mais para os aspectos macroeconômicos do Brasil. Ou seja, equilíbrio fiscal, taxas de juros e reservas em dólar.

Segundo Lívio Ribeiro, a crise na Argentina não tem capacidade de desestruturar a economia brasileira, porque temos reservas em dólar, diversidade de parceiros comerciais e um mercado interno relevante.

Por exemplo, o Brasil hoje tem mais dólares em reservas internacionais que compromissos, ou seja, que dívidas a pagar. Essas reservas somam mais de US$ 380 bilhões, segundo dados do Banco Central.

O dinheiro serve como uma espécie de seguro para o Brasil cumprir obrigações no exterior e se proteger em caso de turbulências externas, como crises cambiais, crises financeiras internacionais e interrupções no fluxo de dinheiro para o país.

Por exemplo, em meio às turbulências internacionais recentes, com a crise argentina e a escalada da guerra comercial entre Estados Unidos e China, o Banco Central vendeu dólares. A medida serviu para aumentar a oferta da moeda americana no país, reduzindo a cotação frente ao real.

Transferência de empresas

Além disso, se por um lado o Brasil tem vendido menos carros para a Argentina, especialistas dizem que é possível que as fábricas de automóveis que hoje existem lá optem por se transferir para o nosso país em busca de uma economia mais sólida.

"A fábrica da Honda está desviando produção para o Brasil. Então, você pode até acabar tendo o efeito contrário de, mesmo com o choque argentino, você acabar tendo mais aporte aqui porque as empresas estão querendo fugir da bagunça que a Argentina pode virar", diz o economista Lívio Ribeiro.

Outro fator que protege a economia brasileira de um baque econômico na Argentina é o fato de termos uma gama variada de parceiros comerciais.

Por mais que a Argentina seja a nossa maior compradora de bens manufaturados, a venda de produtos para outros países ajuda a manter o comércio externo do Brasil aquecido.

"Há 20 anos ou 15 anos, as exportações brasileiras eram divididas basicamente um terço, um terço, um terço, tendo como destino EUA, Europa e Mercosul. Sendo que Mercosul, às vezes, aparecia em segundo lugar", afirma Carlos Vidigal, da UnB.

"Com a emergência da China, o Brasil hoje tem nesse país asiático o seu maior parceiro comercial. Nesse sentido, em termos relativos, a Argentina perdeu importância em termos comerciais."

Baque no turismo

No setor de turismo, a tensão política na Argentina provoca alguns resultados positivos e outros negativos. Por um lado, a queda do valor do peso pode fazer com que viajar para Buenos Aires, Bariloche e outros destinos turísticos fique mais barato para os brasileiros.

Por outro lado, o Brasil pode perder turistas argentinos que, por dificuldades financeiras, podem não conseguirão arcar com os custos de passar férias e feriados no nosso país.

Vale destacar que a Argentina é, de longe, o país que mais envia turistas para o Brasil. No ano passado, 2,5 milhões de argentinos visitaram cidades brasileiras. Os turistas americanos, que aparecem como a segunda nacionalidade com maior presença, foram 538 mil, segundo dados do Ministério do Turismo.

Cada turista argentino gastou, em média, US$ 56 dólares por dia em cidades brasileiras em 2018, ainda de acordo com o Ministério do Turismo.

Por que a eleição causa tanta instabilidade na Argentina?

O resultado das eleições primárias, que demonstrou um cenário extremamente negativo para Macri, surpreendeu, já que as pesquisas de opinião apontavam uma vantagem pequena para Alberto Fernández, não uma distância de 15 pontos percentuais.

Fernández é visto com ressalvas pelo mercado financeiro por admitir a possibilidade de renegociar dívidas externas da Argentina, enquanto Macri sempre se apresentou como disposto a acertar as contas com os credores estrangeiros.

Fernández também prometeu um aumento na pensão paga aos aposentados. O dinheiro, disse ele, viria por meio de uma redução dos juros com que o governo atualmente remunera os títulos públicos do país.

Essa promessa gerou preocupação e especulações em setores econômicos devido ao histórico recente de calotes da dívida argentina, como o da histórica crise econômica de 2001.

Além disso, Fernández tem como vice Cristina Kirchner que, durante seus dois mandatos como presidente, levou a cabo uma política de maior intervenção estatal na economia, com significativo controle de preços.

Já Macri, assim como o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, é visto como resultado de uma nova onda de direita na América do Sul, embora não seja tão conservador quanto Bolsonaro em pautas como direitos LGBT e aborto.

Ao se eleger para o primeiro mandato, ele se comprometeu a pagar dívidas de credores estrangeiros, fechou um acordo com o Fundo Monetário Internacional e chamou para compor a sua equipe empresários, executivos e economistas liberais.

Mas, diante da baixa popularidade recente, em vez de ajuste fiscal, o argentino tem recorrido às estratégias do kirchnerismo que ele tanto criticava. Aumentou o salário mínimo, ofereceu bônus aos trabalhadores e congelou o preço da gasolina.

Mesmo assim, Macri continua a ser o candidato preferido do mercado e, se perder a eleição, essa será a primeira derrota da onda conservadora na América do Sul.

"O que a gente tem agora é um medo da volta ao passado, supondo que o passado é igual, o que não necessariamente é verdade. Mas a chapa de Fernández tende a ser uma chapa mais agressiva e contrária aos mercados, à abertura ao mercado internacional, e a discussões de comércio em organismos multilaterais", explica Lívio Ribeiro.

E como ficam as relações entre Brasil e Argentina?

O resultado da eleição na Argentina têm potencial para transformar as relações do país com o Brasil, apontam os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

Aliado de Macri e crítico de Cristina Kirchner, Bolsonaro chegou a dizer que uma eventual vitória de Fernández colocaria a Argentina em risco de "virar Venezuela".

"Povo gaúcho, se essa 'esquerdalha' voltar aqui na Argentina, nós poderemos ter, sim, no Rio Grande do Sul, um novo estado de Roraima. E não queremos isso: irmão argentinos fugindo pra cá, tendo em vista o que de ruim parece que deve se concretizar por lá caso essas eleições realizadas ontem se confirmem agora no mês de outubro", disse.

Já o ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a dizer que o Brasil poderá deixar o Mercosul se o candidato de esquerda vencer e decidir "fechar a economia" para o comércio internacional.

"Não podemos ficar pendurados na crise da Argentina. O Mercosul, claro, é um veículo de inserção do Brasil no comércio internacional. Mas, se a (Cristina) Kirchner quiser entrar e fechar a economia deles? Se quiser fechar a gente sai do Mercosul. Se ela quiser ficar aberta? Beleza, continuamos."

O professor Carlos Vidigal, da UnB, destaca que os dois países mantiveram intenso comércio bilateral durante os governos Kirchner. Mas ele reconhece que, devido à imensa diferença de visões entre Bolsonaro e Fernández, as relações entre os dois países podem se deteriorar caso o peronista vença.

"O que ocorre é que, se nós tivermos um governo peronista mais protecionista e uma interlocução mais difícil com o governo Bolsonaro, aí a própria economia brasileira pode sofrer um pouco", diz.

Ele também chama a atenção para a possibilidade de Alberto Fernández, se eleito, levantar questionamentos sobre o acordo de livre comércio firmado entre Mercosul e União Europeia, que ainda precisa ser ratificado.

Isso porque há um temor entre parcela dos argentinos de que o acordo leve a um aumento na importação de produtos manufaturados da Europa, reduzindo a competitividade da indústria argentina.

"O governo Macri é bastante favorável ao acordo. Num eventual governo de Alberto Fernández e Cristina Kirchner, retornariam os interesses de recuperar a indústria argentina e proteger os interesses comerciais do país. A argentina com os peronistas será mais cautelosa em relação ao acordo com a União Europeia", diz Vidigal.

Enquanto isso, Fernández tem tentado tranquilizar o mercado e o governo brasileiro.

"Para mim, o Mercosul é uma questão central. E o Brasil é nosso principal parceiro e continuará sendo. Se Bolsonaro pensa que eu vou fechar a economia e que, então, o Brasil vai sair do Mercosul, que fique tranquilo, porque não penso em fazer isso. É uma discussão burra", disse o candiato peronista, em entrevista ao jornal La Nación.


https://www.youtube.com/watch?v=L78mLnTu-Rg

https://www.youtube.com/watch?v=t0WiAn_TIkI

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