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Como tragédias do menino Rhuan e do pênis decepado viraram luta política

Casal suspeito de matar o menino Rhuan é preso no Distrito Federal - Divulgação/Polícia Civil
Casal suspeito de matar o menino Rhuan é preso no Distrito Federal Imagem: Divulgação/Polícia Civil
do UOL

Lucas Borges Teixeira

Colaboração para o UOL, em São Paulo

20/08/2019 04h00

Tem se tornado cada vez mais comum ver pessoas relacionando crimes hediondos a questões políticas e de valores. Casos como o da mulher suspeita de cortar o pênis do marido na Paraíba na semana passada ou do menino Rhuan, esquartejado, segundo a polícia, pela mãe e sua companheira, saem do âmbito policial e entram no debate político mesmo que não haja relação alguma entre os casos.

Nas redes sociais, os grupos conservadores e de apoio ao presidente Jair Bolsonaro (PSL) ligam os crimes à "ideologia de gênero" e culpam "partidos de esquerda". Discurso similar foi adotado pelo ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, que também atribuiu a morte de Rhuan à ideologia de gênero.

Cientistas políticos ouvidos pelo UOL afirmam que esse tipo de relação sem comprovação científica se dá por causa da intensificação da polarização política e de valores no Brasil, estimulada, na opinião deles, pelo governo federal.

"A polarização, que há uns anos tomou conta do debate público, se deslocou da política e foi também para os valores. Um grupo político que, hoje, se vê em ascensão politiza [as pautas] para que os valores que eles defendem sejam praticamente transformados em lei", diz o cientista político Marco Antônio Teixeira, da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Segundo ele, tal como foi feito em governos anteriores, que tornaram determinadas pautas em legislação, como a Lei do Feminicídio, questionada nas redes sociais após a divulgação do caso da mulher suspeita de matar o marido na Paraíba, grupos conservadores querem impor suas pautas.

"E aí tende-se a politizar tudo: a cor da roupa, crimes contra minorias, direitos humanos, o meio ambiente, o índio", diz Rodrigo Prando, professor de ciência política da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Isso acontece, ele afirma, mesmo que não haja uma ligação concreta entre os assuntos, como nos casos destes crimes hediondos.

Banalizar, ser raso no argumento é mais confortável do que tentar rever os conceitos. As pessoas se tornam autoritárias querendo impor suas ideias e relacionar o ruim ao outro

Rodrigo Prando, professor de ciência política do Mackenzie

Ser contra uma ideia une mais do que ser a favor de outra

Para Aninho Irachande, professor do Instituto de Ciência Política da UnB (Universidade de Brasília), esse fenômeno de associação de diferentes conceitos ruins a determinados grupos ou pessoas se dá por que é mais fácil reunir pessoas em oposição a algo do que a favor.

"Durante a Guerra Fria, era normal criar ameaças para constituir unidade. Aqui, a partir dos eventos que culminaram no impeachment de Dilma Rousseff, chegamos ao ponto de que ser anti-alguma coisa traz muito mais coesão do que identidade em uma proposta", afirma o professor.

Neste meio se enquadram a politização de crimes, cores e qualquer outro elemento que não tenha ligação direta com um projeto político. "A rejeição a certa iniciativa aproxima muito mais, mesmo que não haja identidade de outra natureza neste grupo, eles se reúnem para se opor. É o que tem acontecido aqui", afirma.

Os especialistas avaliam que este fenômeno de polarização cresceu de forma orgânica na sociedade, com estímulo de diferentes atores políticos, mas, desde a eleição, tem sido usado e reforçado pelo governo federal e seu grupo.

"[A radicalização] surgiu espontaneamente em razão de um fenômeno concreto em torno da saída da presidente, mas hoje isso tem um papel utilitário, como estratégia de condução política", afirma Irachande.

Não tenho dúvida de que os últimos discursos do presidente estão nessa tendência de unir, ao redor dele, grupos de rejeição ao outro

Aninho Irachande, professor da UnB

Para Prando, esta é uma estratégia proposital do presidente para manter seu eleitorado participante. "Bolsonaro se elegeu de um jeito que, para se manter ativo, tem de se opor a algo ou alguém. Com essas declarações, muita gente consegue se encontrar no presidente, alguém que fala o que tem vontade sem freios", avalia o cientista político. "E dai transborda para o dia a dia, você diz que aquilo é questão de gênero, que quem faz esse tipo de coisa é criminoso, fala que cientista está a serviço de ONG e por aí vai."

Isso não se resume à figura de Bolsonaro, mas também de outros representantes do governo, como os ministros Ernesto Araújo e Damares Alves, e outros apoiadores, como o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.

"Eles estão testando os limites do seu eleitorado para ver até onde dá para chegar. Tem polêmica, violência, tem de tudo. Tanto Bolsonaro quanto Witzel estão tendo de justificar uma série de coisas, afinal essas declarações sem dúvida servem para estimular a radicalização", concorda Teixeira.

Rhuan foi morto com 12 facadas e foi degolado pela ma?e, diz polícia

Band Notí­cias

Crimes não têm a ver com questões de gênero

Rhuan foi morto no início de junho. Desde então, campanhas nas redes sociais têm feito a associação da morte ao fato de que as acusadas de matá-lo são um casal homossexual. No entanto, especialistas em psiquiatria e psicologia forense ouvidos pelo UOL à época, afirmaram, em consenso, que crimes hediondos como este nada têm a ver com questões de gênero.

"A emasculação pode ter certo caráter sexual, mas não é o fato de serem duas mulheres homossexuais que levou a esse tipo de comportamento. Se não fossem, e tivessem isso na sua natureza, fariam independentemente", afirmou o psiquiatra forense Guido Palomba.

Coordenador de psicologia do Núcleo Forense do IPq-USP (Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo), Antonio de Pádua Serafim disse que esse tipo de crime independe dos formatos das relações interpessoais: pode ser casal homo, hétero, o que for. "Crimes graves não associam do vínculo afetivo, dependem mais de características individuais", afirmou.

"Pensar por categoria de gênero é a lógica do preconceito, de quem não está pensando. Apontar isso é fazer associação entre aspectos que não são associáveis", disse Eduardo Fraga, professor de Psicologia do Mackenzie. "Há muitas questões, mas a orientação sexual não é uma variável."

Polarização já extrapolou as redes sociais

Ambiente voltado à criação e divulgação de conteúdo, as redes sociais se tornaram o local mais propício para propagar polarização e divulgar de notícias falsas, como nos casos desses crimes. O problema, apontam os especialistas, é que as relações estão extrapolando este meio.

"As redes sociais não são a sociedade: você só vai dialogando com a sua bolha. É como se fosse um mundo imaginário", diz o cientista político Marco Antônio Teixeira. "Se você pega as pesquisas, o mundo real não quer a política do armamento, não criminaliza questões de gênero. Mas elas acabam influenciando em um certo grau de sociabilidade. Então, mesmo no bar, você não quer conversar com o diferente, já se encheu dele."

"A facilidade com que se espalha ideias sem a necessidade de argumentar ou embasar é uma forte característica das redes. Se conta o número das pessoas que curtem e seguem, não os argumentos. Então, este tipo de informação improcedente se dissemina", afirma Irachande, da UnB.

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