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Sardinhas em troca de leite em pó: Crise e hiperinflação obrigam venezuelanos a retornar ao escambo

Guillermo D. Olmo - @BBCgolmo - Da BBC News Mundo na Venezuela

20/04/2019 16h57

No mercado de Los Cocos, em uma das principais cidades da Venezuela, pescadores chegam a trocar 24 quilos de sardinha por um pacote de leite em pó.

Beudis Matínez é pescador desde os dez anos de idade, mas só agora não encontra quem compre seus peixes. Não com dinheiro, pelo menos.

Mas ele está satisfeito, pois conseguiu trocar 24 kg de sardinha por um pacote de leite em pó para alimentar seu filho.

Esse tipo de transação se tornou comum no mercado Los Cocos de Puerto La Cruz, uma das cidades mais importantes da Venezuela.

Matínez, como muitos outros pescadores, passou a aceitar trocar sua mercadoria não por dinheiro, mas por outros itens, preferencialmente alimentos. Trata-se de uma forma moderna de escambo, a modalidade comercial das sociedades primitivas, que voltou a ser praticada na Venezuela.

Afetados há alguns anos pela escassez de dinheiro em espécie e por uma hiperinflação que corrói o valor do bolívar, a moeda nacional, muitos venezuelanos, sobretudo no interior do país, têm encontrado no escambo uma forma de se abastecer.

Em Puerto La Cruz, moradores e comerciantes estão acostumados a um mercado onde não se usam mais moedas ou cartões de crédito. "Vim aqui para trocar um pacote de macarrão e esta ferramenta", diz um homem segurando uma chave enferrujada com a mão esquerda.

Ele se junta a outros que esperam para entrar em um barco amarrado a um dique, um dos locais onde ocorrem as transações com os pescadores.

"Com a inflação você não consegue comprar (com dinheiro) nem um pacote de farinha", diz Matínez.

No dia em que a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, visitou o local, o pescador teve uma jornada boa. "Ao menos, eu consegui leite para meu filho. Normalmente tenho dificuldade em conseguir o cálcio de que ele precisa", afirma.

A família de Beudis Matínez sempre se dedicou à pesca nessa cidade do Estado de Anzóategui, outrora uma das mais favorecidas pela renda proveniente do petróleo venezuelano.

Medicamentos

Beudis Matínez mal consegue sobreviver. Isso porque subiu muito o custo do combustível para abastecer seu pequeno barco e, por outro lado, caiu a capacidade da população de comprar peixe, que é o fruto de seu trabalho. Ele ainda teve outros problemas inesperados, como uma infecção urinária sofrida por um sobrinho recentemente, que demandou gastos com medicamentos.

O escambo surgiu em seu auxílio.

"Eu tinha procurado em todos os lugares os remédios que os médicos receitaram, mas não consegui encontrá-los. Até que um dia alguém apareceu no mercado e ofereceu esses medicamentos, e eu consegui trocar o peixe por eles."

Os remédios são um dos produtos mais cobiçados em mercados como o de Puerto La Cruz, embora os pescadores também recebam como moeda de troca macarrão, arroz e óleo - estes são mais acessíveis à população.

"Normalmente, a gente paga com outra comida", resume um dos homens na fila para entrar no barco.

Também há moradores com ferramentas antigas e outros equipamentos, como ventiladores.

A hiperinflação venezuelana, que chegou a 1.000.000% no ano passado, fez com que o preço da carne subisse substancialmente. Isso fez com que os pescados, em especial as sardinhas, se tornassem uma das poucas fontes de proteína acessíveis. Ainda assim, o valor do produtor tem caído.

"Com os cortes de energia elétrica, as pessoas não conseguem manter o peixe congelado. Então, elas preferem não comprá-los para não perdê-los depois", diz Beudis Matínez.

Os 24 kg de pescado que ele trocou por um pacote de leite em pó na Venezuela, por exemplo, valeriam cerca de U$ 190 (R$ 724) no mercado europeu.

Para quem vai ao mercado de Los Cocos, nem sempre é fácil conseguir o que procura.

Uma das mulheres que se aglomeram na fila é Yomaira Herrera, que chegou ao mercado às 6h. "Estou aqui há quatro horas e somente agora estou conseguindo um pacote de sardinhas", diz ela.

Multidão faminta

O público subiu nos barcos antes mesmo deos pescadores amarrarem as embarcações no cais. Para acalmar a multidão faminta, os pescadores às vezes param os barcos longe do cais - garotos com botes levam e trazem produtos que serão trocados.

Ao mesmo tempo, pelicanos aterrizam para comer os restos das sardinha jogados pelos pescadores.

Em outros pontos da Venezuela também há escambo. Na cidade de Cúpira, o comerciante Génesis Melo tem um pequeno posto que oferece um excelente cacau abundante na região, além de um pão feito com farinha de mandioca típica da área.

"Quase tudo que eu vendi é para troca, porque as pessoas não têm dinheiro - é a única maneira de conseguir algo em troca de meus produtos", explicou.

Uma velha aposta de Hugo Chávez

Situações semelhantes de escambo foram registradas em países como a Grécia por volta de 2009, após o país ser um dos mais duramente afetados pela crise econômico-financeira que eclodiu um ano antes. Mas economistas explicam que, do ponto de vista econômico, trata-se do estágio mais primitivo das trocas comerciais, já que exige que dois lados coincidam perfeitamente no que querem trocar entre si, o que nem sempre permite trocas igualitárias. O advento do dinheiro serviu justamente para facilitar isso.

Ainda que para muitos o escambo seja visto como um retrocesso, o ex-presidente Hugo Chávez, que morreu em 2013, defendeu essa modalidade econômica.

"O socialismo que estamos começando a construir é diferente, é baseado na solidariedade, é por isso que é socialismo. (...) Devemos promover o escambo: isso é um mercado, um mercado que pode ser reativado através de escambo e não moeda", disse ele, em 2006.

Indiretamente, a promessa de Chávez se cumpriu.

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