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A estranha normalidade da vida em um país que não existe oficialmente

Thomas de Waal* - Do Carnegie Endowment for International Peace

20/01/2019 07h42

Um viajante inexperiente provavelmente não veria muita coisa fora do comum ao caminhar pelas ruas das cidades de Abecásia, da Transnístria ou da República Turca de Chipre do Norte - territórios separatistas que protagonizam conflitos ainda longe de serem solucionados.

O endereço postal é a referência que sinaliza para o mundo onde fica a nossa casa. A última linha, em geral, é destinada ao país, do Afeganistão ao Zimbábue.

Para alguns milhões de pessoas, porém, essa informação de rodapé é um problema. Os serviços internacionais de correio não reconhecem as cartas que têm como origem lugares como a Abecásia, a Transnístria ou a República Turca de Chipre do Norte, por exemplo.

O internauta que abrir um menu de países em qualquer formulário online dificilmente encontrará essas opções na lista.

As correspondências internacionais enviadas a partir dessas regiões chegam a seus destinos em geral só depois de serem redirecionadas a partir de outros países.

Esse trio de Estados não reconhecidos está entre os poucos países do mundo que existem no mapa, mas não chegam a ser Estados-nação ou membros de organizações internacionais.

Em comum, eles têm o fato de terem sido formados após conflitos e crises políticas - e, apesar disso, são autônomos e relativamente estáveis.

Lá, a vida corre dentro de uma certa normalidade: os impostos são arrecadados pelo fisco e as crianças frequentam a escola. Mas, como era de se esperar, tudo é um pouco mais complicado do que no resto do mundo.

Entre as regiões que se configuram dentro dessa zona cinzenta, a ilha de Taiwan é de longe a que tem maior população, cerca de 23,5 milhões.

Apesar de ela ter autonomia desde 1949, a China a considera como parte de seu território - neste mês, o presidente Xi Jinping declarou que a ilha "deve e será reunida novamente (no âmbito político)" ao continente. Taiwan é reconhecida por menos de 20 países e não é membro das Nações Unidas.

No outro extremo, o grupo autodenominado Estado Islâmico proclamou como seu um território, três anos atrás, um trecho que se estende entre Síria e Iraque - e que nunca foi reconhecido por qualquer outro país.

Abecásia, Transnístria e República Turca de Chipre do Norte estão entre esses dois polos. Todos surgiram a partir de conflitos que ainda não tiveram desfecho.

A região separatista da Abecásia, na região do Cáucaso, venceu uma guerra de secessão contra a Geórgia, que foi parte da União Soviética até 1991, em um confronto entre 1992 e 1993 e declarou independência em 1999. Em 2008, foi reconhecida pela Rússia - considerada uma força de ocupação pela Geórgia - e por uma série de outros países.

A Transnístria também é um subproduto do desmantelamento do bloco soviético, tendo se separado da Moldova (Leste Europeu) depois de um conflito curto em 1992.

Já a República Turca de Chipre do Norte se declarou como Estado uma década antes, em 1983, nove anos depois de uma crise política que culminou em um conflito em que a Turquia invadiu o norte da ilha mediterrânea.

As Nações Unidas até hoje patrulham a chamada Linha Verde, zona desmilitarizada que divide a ilha entre a parte que declarou independência e aquela controlada pelo governo da República de Chipre.

As negociações para uma eventual reunificação não avançaram significativamente desde a separação.

Os três países têm governos próprios e, apesar de estarem longe de serem reconhecidos internacionalmente, não dão sinais de que estejam em apuros.

Entre outros fatores, essa "normalidade institucional" os coloca dentro da definição de Estados "de fato", aqueles que têm território próprio, mas que estão à margem do sistema que rege as relações internacionais entre países.

Não menos importante, cada um deles tem um padrinho poderoso: a Rússia no caso da Abecásia e da Transnístria e a Turquia no caso da República Turca de Chipre do Norte.

Esses "patronos" as ajudam a sobreviver como regiões autônomas, provendo ajuda financeira e militar e enviando tropas quando necessário.

Mas, ainda que os aliados sejam importantes, mesmo que Rússia e Turquia reduzissem o apoio, esses territórios separatistas dificilmente desapareceriam pura e simplesmente.

Eles ficariam enfraquecidos de maneira geral, mas manteriam a forte identidade local que lhes é característica e a aspiração de serem países independentes.

A comunidade internacional não costuma gastar tempo com essas regiões - ou se ater aos problemas estruturais que as mantêm nesse estranho estágio de limbo.

O interesse pelos Estados de fato é grande, por outro lado, entre os apaixonados por "lugares que não existem", particularmente nos casos da Abecásia e da Transnístria.

Isso porque a ausência de reconhecimento oficial desses lugares é comumente compensada por uma rica produção de símbolos de Estado.

É uma parafernália digna de Freedonia - o Estado fictício de Os Grandes Aldrabões, clássico dos irmãos Marx lançado na década de 1930 - ou de uma República de Zubrowka, do filme O Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson.

A Abecásia, por exemplo, lança periodicamente selos exóticos de olho em colecionadores ao redor do mundo.

A Transnístria, por sua vez, mantém insígnias soviéticas entre seus símbolos, como o martelo e a foice que estampavam a bandeira do bloco.

O país imprime sua própria moeda, o rublo de Transnístria, que só pode ser negociado dentro de seus limites territoriais, e moedas de plástico em diferentes formatos, que facilitam a identificação por pessoas cegas - e que alcançam altos valores quando vendidas no eBay.

Apesar da estabilidade no dia-a-dia das instituições desses países, há também problemas a serem enfrentados. O tráfico de pessoas, por exemplo, é uma questão importante tanto na República Turca de Chipre do Norte quanto na Transnístria.

Ainda assim, a impressão que um visitante de primeira viagem teria desses lugares seria provavelmente de normalidade.

As ruas têm seus semáforos, são patrulhadas pela companhia local de tráfego, têm hospitais e outros serviços que formam os Estados-nação que conhecemos.

Os cafés estão cheios de gente concentrada na tela de seus smartphones - ainda que as bebidas servidas não tenham por trás uma marca global como a Starbucks. E as pessoas têm objetivos parecidos com aquelas dos países propriamente ditos.

As empresas querem exportar, os estudantes almejam conquistar uma bolsa de estudos para estudar no exterior.

O trio de países segue voluntariamente algumas leis europeias. Nenhum deles instituiu a pena de morte e todos têm eleições relativamente concorridas - mesmo que a lista de candidatos seja curta.

Um país não consegue, contudo, sobreviver apenas vendendo selos. Ele precisa quase invariavelmente arrecadar impostos para se financiar e garantir que a polícia e o sistema educacional funcionem.

Essa vulnerabilidade acaba dando a outros países e a potenciais mediadores de conflito alguma vantagem e poder de influência sobre essas regiões - algo usado com parcimônia até o momento.

Ofertas de ajuda com a educação e a saúde, por exemplo, podem vir acompanhadas de pedidos de cooperação para a extradição de fugitivos.

Isso tem acontecido em certa medida com a Transnístria, que discretamente assinou o acordo de livre-comércio firmado entre a Moldova e a União Europeia.

O país também selou um acordo para que veículos locais possam circular no exterior com placas "neutras" registradas na Moldova e para que diplomas de universidades da região tenham reconhecimento internacional.

Visualmente, o lugar pode ainda parecer um parque temático soviético, com as estátuas de Lênin e os martelos e foices, mas ele tem se movido em outra direção.

"Minha cabeça está na Rússia, mas minhas pernas estão se movimentando em direção à Europa", ilustrou um ex-funcionário do governo.

Com a perspectiva de resolução dos conflitos ainda distante, esse modelo que implementa mudanças de forma gradual, à medida em que procura aumentar o engajamento internacional, tem se mostrado uma alternativa para esses países seguirem adiante.

Ainda que os três territórios não sejam reintegrados aos Estados dos quais se separaram em um futuro próximo, pelo menos suas populações - ainda que não o governo - podem se tornar parte da comunidade internacional.

*Thomas de Waal, pesquisador da Carnegie Europe com foco no Leste Europeu e na região do Cáucaso, é autor do relatório Território Instável: Entendendo os Estados de Fato e Territórios Separatistas da Europa, que embasou este artigo

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