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A sociedade mais vigiada do mundo: como a China usa o reconhecimento facial

Telão com tecnologia da MegVii monitora transeuntes em rua de Beijing - Reprodução
Telão com tecnologia da MegVii monitora transeuntes em rua de Beijing Imagem: Reprodução
do UOL

Felipe Zmoginski

Colaboração para o UOL, na China

19/01/2019 04h00

País seguro e com níveis de criminalidade mais baixos que os da Europa Ocidental, China acelera investimentos em vigilância em massa para ser capaz de saber, em tempo real, o que fazem seus 1,4 bilhão de habitantes

Imagine que as fotos, vídeos e áudios de seu smartphone são monitorados, em tempo real, por uma central de análise de dados e que seu deslocamento, de casa para o trabalho, é acompanhado por câmeras capazes de reconhecer seu rosto e associá-lo a seus dados pessoais, como a escola onde estudou, as festas a que foi e até quando esteve em cultos religiosos.

Ao entrar em um supermercado, suas bolsas são checadas por agentes de segurança, com aparelhos portáteis de raio-X e câmeras frontais que leem sua íris para certificar-se de sua identidade.

A descrição poderia ser a de uma novela de ficção científica de uma sociedade futurista e totalitária, mas é, na verdade, o dia a dia de 21 milhões de habitantes que vivem na província de Xinjiang, no extremo oeste da China, região mais vigiada do país e terra da etnia Uigur, um dos 56 grupos étnicos que formam a população chinesa e, certamente, o mais vigiado deles.

Nas metrópoles Beijing, Xangai e Shenzhen, o sistema de vigilância não é tão rigoroso, ainda que cresça exponencialmente apoiado em tecnologias de reconhecimento facial, Big Data e inteligência artificial.

Estrelas maiores da nova China vigilante, as startups convertidas em empresas multibilionários Sense Time e MegVii lideram o desenvolvimento de uma das tecnologias mais sofisticadas para vigilância pública, as câmeras e software de reconhecimento facial. De acordo com documentos públicos da MegVii, uma única câmera da empresa é capaz de analisar até mil pessoas por frame capturado, identificar seus rostos e checar, em base de dados públicas, se há entre os monitorados pessoas procuradas pela Justiça

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Ao comparar a distância entre os olhos, o tamanho do osso do nariz ou o desenho do queixo, a tecnologia da MegVii pode dizer, com 99,98% de chances de acertar, quem é você, desde que seus dados biométricos estejam no banco acessado pela empresa.

O sucesso da tecnologia é tamanho que a empresa iniciante é avaliada em US$ 3,5 bilhões e conta com investimentos de grandes conglomerados, como a instituição financeira SoftBank e o grupo Alibaba. Já a SenseTime não fica muito atrás. Seu valor de mercado é estimado em US$ 1,6 bilhão, o que a eleva ao seleto clube dos unicórnios, nome dado às empresas que superam valor de US$ 1 bilhão antes da abertura de capital.

A maior parte da receita destas empresas vem de contratos com órgãos públicos, como prefeituras, governos provinciais e órgãos de transporte (administradores de estações ferroviárias e aeroportos). Atualmente, os 56 maiores aeroportos do país possuem reconhecimento facial. 

Apoio popular

Apesar de soar intrusivo ter seu rosto escaneado em espaços públicos permanentemente, o uso de reconhecimento facial é aprovado pela maior parte da população chinesa, que associa o uso de novas tecnologias a uma maior sensação de segurança.

china2 - Wikimedia Commons - Wikimedia Commons
Policial usa óculos com reconhecimento facial
Imagem: Wikimedia Commons

Segundo a agência de notícias chinesa Xinhua, a tecnologia de reconhecimento de rostos é apontada por 83% dos cidadãos como recurso positivo para aumentar a sensação de segurança. De fato, indicadores como o número de homicídios por 100 mil habitantes, na China, são mais baixos que os de países da Europa Ocidental, como França e Reino Unido e equivalentes aos da Suíça, em torno de 0,7 mortes por grupo de 100 mil pessoas. No Brasil, este indicador é de 29,8/100 mil, segundo números do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada (IPEA).

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O sucesso da política de vigilância para a segurança dos cidadãos é amplamente explorado pela mídia local. Um estudo publicado pelo Instituto de Inteligência Tecnológica de Chongqing, província no centro do país, afirma que as filas em aeroportos e nas estações de trem bala foram sensivelmente reduzidas: é preciso menos rigor ao checar documentos manualmente, já que câmeras e software avaliam antes o perfil dos passageiros.

Um suspeito de assassinatos em série foi detido em meio a uma multidão de 60 mil pessoas, que assistia a um concerto de rock em Nanchang, no sul do país. "Esta prisão só foi possível graças às câmeras de vigilância, que cruzavam as informações das pessoas presentes com a lista de procurados pela Justiça", declarou Zhang Chu, chefe de polícia local à agência Xinhua.

As câmeras são usadas até mesmo para constranger "maus cidadãos" que cometem pequenas infrações, como jogar papel no chão ou atravessar a rua fora da faixa de pedestre.

Em Xiangyang, cidade na província de Hubei, a prefeitura local instalou um telão de 200 polegadas nos cruzamentos mais populares da cidade, em que são exibidas imagens de pessoas que atravessam a rua quando o sinal está fechado para pedestres, atiram lixo no chão ou usam suas bicicletas fora das ciclovias apropriadas. Ninguém sofre punições como multas ou prisão, mas a exposição pública visa desencorajar os mais desobedientes. Em alguns casos, infratores recorrentes recebem cartas em suas casas ou empregos, expondo sua conduta aos colegas de trabalho e familiares.

Além dos efeitos para a segurança pública, no entanto, a espiral de vigilância crescente pode ter desdobramentos políticos, como inibir a organização de dissidentes, especialmente nas regiões mais sensíveis do país, como o Tibet e Xingjiang. Nesta última, onde uma minoria Uigur já promoveu atentados em nome de sua independência, a vigilância é especialmente severa. Obriga os locais a instalar app chamado "JingWang", algo como "Internet Limpa", que monitora as atividades online.

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Policiais conferem se smartphones de cidadãos em Xinjiang estão com o app JinWang instalado
Imagem: Divulgação/Hong Kong Free Press

O grande irmão está online

Além das mais de 200 milhões de câmeras públicas vigiando as cidades do país, tecnologias de monitoramento das atividades online aprofundam a vigilância sobre os cidadãos locais.

Os mais de 750 milhões de cidadãos conectados à internet são submetidos a um controle mais rigoroso que em qualquer outro país do mundo. Desde 2011, por exemplo, a principal rede social e de mensagens instantâneas do país, o WeChat, criada pela Tencent, armazena históricos de conversas e posts de seus usuários por, ao menos, seis meses. Há um ano, o Sina Weibo, uma espécie de Twitter local, passou a exigir que todos os usuários usassem seu nome real e RG para fazer login, impedindo postagens anônimas.

Uma forma comum de chineses driblarem o controle digital da informação é o uso de VPNs, softwares que criam redes privadas (e encriptadas) para o tráfego de dados. As mais populares, no entanto, estão bloqueadas, como a Astrill e Express VPN, embora quem as instale fora da China eventualmente consiga utilizá-las.

O uso de VPNs ainda é o principal meio usado para que locais acessem o romance "Occupy", uma novela que narra uma história de amor entre dois homens. Originalmente, o livro foi vendido em versão de papel, pela plataforma TaoBao, do grupo Alibaba. O autor da trama, conhecido pelo pseudônimo de "Tianyi" acabou sentenciado a 10 anos de cadeia por produzir e comercializar conteúdo considerado pornográfico na China.

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Em 2018, a vigilância online atingiu novos serviços, como plataformas de e-commerce e enciclopédias online. O grupo Alibaba, líder em comércio eletrônico no país, anunciou a criação do programa "Sesame Credit", cuja adesão é voluntária. O usuário que se inscreve no programa obtém descontos em compras online e entrega prioritária dos itens comprados na plataforma. Em troca, devem permitir que todos seus dados de compra e venda na plataforma sejam compartilhados com um sistema que confere pontuação aos participantes do sistema.

Quem gasta muito com livros ou roupas para bebê, por exemplo, recebe uma avaliação alta, já quem gasta demais com jogos eletrônicos, atividade considerada menos nobre, tem uma avaliação negativa.

O Sesame Credit compartilha as informações com órgãos públicos chineses que devem usar os dados, a partir de 2020, para premiar bons cidadãos. Usuários com alta pontuação terão preferência, por exemplo, para comprar passagens aéreas e de trem bala, nos disputados feriadões nacionais, quando centenas de milhões de pessoas viajam pelo país para visitar a família, em suas cidades natal. Usuários com pontuação baixa poderão ficar excluídos destes serviços em momentos de pico e forçados a viajar de ônibus.

Integra este sistema de pontuação das pessoas, a plataforma Zhihu, uma espécie de Wikipédia para os chineses, muito popular entre os estudantes que se preparam para o Gao Kao, o disputadíssimo vestibular chinês. A diferença principal em relação a Wikipédia é que o serviço chinês exibe anúncios, além de possuir um sistema de assinatura de aulas em vídeo, no modelo Netflix.

Em agosto deste ano, a empresa anunciou a captação de US$ 270 milhões com investidores asiáticos para financiar sua operação, que conta com um misto de conteúdo gerado por usuários e aulas produzidas por especialistas em áreas como matemática, biologia e literatura chinesa. Essa sessão também é chamada de "Zhihu University".

Enquanto o acesso aos verbetes de conteúdo gerado pelo usuário é livre e gratuito, o acesso a aulas online é pago. Usuários que contribuam com verbetes relevantes e que assistam vídeos de aulas consideradas "nobres", como literatura e matemática, terão avaliação mais alta. Quem não produzir verbetes ou o fizer com baixa qualidade ou, ainda, gastar muito tempo pesquisando sobre temas tidos como menos nobres, como games ou viagens, terá pontuação menor. A simples adesão à plataforma de pontuação assegura descontos e privilégios no uso do Zhihu por estudantes.

Uma das demonstrações de que o sistema de pontuação e vigilância, na China, é eficiente é o fato de ele praticamente só causar espanto fora do país.

Dentro das fronteiras chinesas, o discurso mais comum, mesmo o compartilhado entre amigos, sem nenhum temor de serem avaliados por terceiros, é de orgulho pelo nível de segurança interna e pela qualidade da tecnologia produzida na China.

"No mundo todo, as empresas privadas sabem tudo o que nós fazemos. Não é diferente nos Estados Unidos ou na Europa", diz o presidente de uma importante aceleradora de Beijing, que apesar da despreocupação com a vigilância local, pediu para não ter o nome registrado.

O fato de o governo ter controle sobre estes dados, para mim, é até um sinal positivo, já que confio mais em uma autoridade pública que, em tese, tem compromisso com a sociedade, do que na boa vontade de uma empresa privada

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BBC Brasil

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