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Damares prometeu cuidar de gays e mulheres como antes, diz diretor da HRW

"Cordial", a nova ministra se comprometeu com "uma agenda ampla" de direitos humanos - Valter Campanato/Agência Brasil
"Cordial", a nova ministra se comprometeu com "uma agenda ampla" de direitos humanos Imagem: Valter Campanato/Agência Brasil
do UOL

Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

18/01/2019 04h00

A escolha de Damares Alves para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos causou alvoroço entre defensores dos direitos humanos no Brasil. Pastora evangélica, ela já assessorou o deputado autor do projeto da "cura gay" e é defensora do que opositores chamam de "bolsa estupro", um auxílio financeiro às vítimas que optarem por dar à luz. Seu histórico, no entanto, é relevado pelo chileno José Miguel Vivanco, diretor para as Américas da HRW (Human Rights Watch), uma das principais organizações não-governamentais de direitos humanos no mundo.

O diretor da ONG encontrou a ministra na tarde da última segunda-feira (14), quando discutiram os projetos do novo governo para os Direitos Humanos. Saiu satisfeito com o que ouviu.

"Ela foi muito cordial, alegre, simpática e se comprometeu com uma agenda ampla de direitos humanos", contou ao UOL o chefe da HRW nas Américas desde 1994. "Me pareceu, por seus gestos, que ela havia entendido que uma coisa é seu trabalho pastoral e, outra, é seu papel na linha de frente dos direitos humanos no Brasil. E espero que assim seja."

Enquanto aguarda "como será" o trabalho de Damares, Vivanco não economiza críticas ao presidente Jair Bolsonaro, "caso único" na América Latina. "É a primeira vez que um líder populista chega ao poder eleito democraticamente com um discurso explicitamente contra direitos humanos", disse.

Também sobraram críticas aos governos da esquerda bolivariana na América Latina, a Donald Trump e à ascensão do conservadorismo. "Estamos entrando em uma etapa obscura e preocupante para os direitos humanos nesta região", afirmou.

No Brasil, as maiores preocupações são a flexibilização para a posse de arma e a falta de políticas públicas contra a violência.

No Ceará, diz, os presídios são dominados por facções porque "há décadas o Brasil abandonou o mínimo interesse por controlar as prisões". No estado do Rio, a violência policial vitimou 1.400 civis no ano passado. "Todas as investigações demonstram que muitos supostos confrontos não são mais do que execuções extrajudiciais", disse.

Veja os principais trechos da conversa, ocorrida na última quinta-feira (17) em São Paulo:

UOL - Governos populistas de esquerda de um lado e, de outro, a ascensão da direita. O que esperar para os direitos humanos em 2019 no Brasil e nas Américas?

José Miguel Vivanco é membro da HRW desde 1986. Assumiu a diretoria da ONG para as Américas em 1994 - Divulgação/Human Rights Watch - Divulgação/Human Rights Watch
José Miguel Vivanco é membro da HRW desde 1986. Assumiu a diretoria da ONG para as Américas em 1994
Imagem: Divulgação/Human Rights Watch
José Miguel Vivanco - Sou pessimista. Estamos entrando em uma etapa obscura e preocupante para os direitos humanos nesta região. Durante um tempo, uma das principais ameaças foi a proliferação dos governos bolivarianos financiados ou apoiados pela Venezuela. Foram governos que introduziram uma agenda ideológica que não admite crítica e preferem falar em direitos humanos em termos ideológicos, como se eles só fossem violados pela direita. São governos que não creem na institucionalidade democrática, no poder judicial independente, não creem na liberdade de expressão. Sobram exemplos na região. O principal foi Hugo Chaves (Venezuela), mas também Rafael Correa, no Equador, que concentrou o poder perseguindo jornalistas, a sociedade civil e controlando as forças policiais. É a mesma receita para Evo Morales, na Bolívia, e Daniel Ortega, na Nicarágua.

A região também vem elegendo governos de centro-direita.

Hoje em dia estão surgindo outro tipo de governo populista de conduta similar. Usam um discurso de polarização, que divide o país entre os bons e os maus, os aliados e os inimigos. O candidato chega ao poder, mas segue governando como se estivesse em campanha, sempre verbalmente violento, sem sustentação em dados ou na ciência. Este é o caso de Donald Trump, nos Estados Unidos. Um governante que todos os dias mente. Mente, mente e mente. Não tem o mínimo pudor. Não são meias verdades, são mentiras constantes. Um presidente que governa sobre a base do racismo, do ódio e das políticas anti-imigração. Ele constrói fantasmas e medos na população para que o apoie. É um modelo demagógico e simplista em que o inimigo é o resto do mundo: os imigrantes e a imprensa independente. A forma de se comunicar é pelas redes sociais, onde não há filtro nem controle. Questiona-se permanentemente a motivação de intelectuais e acadêmicos porque a ciência e os fatos não contam. E, finalmente, ataca as forças policiais e os tribunais. É um movimento que cresce. São os Estados Unidos, mas também é o México, com a eleição de Andres López Obrador, e aqui no Brasil, com a eleição de Jair Bolsonaro.

O que faz única a eleição de Bolsonaro no Brasil?

Bolsonaro é um caso especialmente sério porque é a primeira vez na América Latina que um líder populista chega ao poder eleito democraticamente com um discurso explicitamente contra direitos humanos.

Eu não estou dizendo que não existam líderes que violem os direitos humanos; eles são muitos. Mas eles costumam chegar ao poder com um discurso harmonioso, nunca sendo abertamente contrário às minorias ao mesmo tempo em que valoriza a tortura e a ditadura militar... É um caso único.

O povo indígena no Brasil teme perder direitos com o novo governo. Essa ameaça existe de fato?

Há muitas comunidades que temem, como a LGBT, negra, mulheres ou mesmo qualquer um que vive em favelas. Não é alentador que a proteção dos indígenas ocorra sob a supervisão do Ministério da Agricultura, liderado por alguém que, no setor privado, era um importante dirigente da agroindústria. Historicamente há uma tensão muito forte entre as comunidades indígenas e o agronegócio. Veremos como serão as medidas concretas.

O Ceará vive um caos na segurança pública. Como o senhor avalia o comportamento dos governos na condução da crise?

As autoridades têm a obrigação de promover a segurança a seus cidadãos, que estão apavorados com o crime organizado. Mas é importante que se estabeleça a ordem pública sem que isso signifique violação aos direitos humanos.

As autoridades no Ceará dizem que precisa de mais viaturas, policiais, cadeias. Está aí a resolução do problema?

A solução está em políticas criminais de inteligência que permitam desarticular essas facções. É preciso uma polícia que se se infiltre nessas organizações e conclua rapidamente seus casos ao mesmo tempo em que recupera o controle das prisões. Do contrário, as facções continuarão controlando o crime de dentro das cadeias. Lamentavelmente, há décadas, o Brasil abandonou o mínimo interesse por controlar as prisões.

Em que aspecto a violência é igual em todo o Brasil?

A violência da Polícia Militar no Brasil é deplorável. Todas as investigações demonstram que muitos supostos confrontos não são mais do que execuções extrajudiciais, e não legítima defesa. Os números de mortos pela polícia aumentam no Brasil a níveis históricos. Não é só no Rio de Janeiro ou Ceará, mas em todo o país. Mas no Rio, esses números são os mais altos de sua história, tanto em violência quanto em civis mortos em supostos enfrentamentos com a polícia. A polícia nos Estados Unidos, com 325 milhões de pessoas, executou ao redor de mil pessoas em 2018. Só no estado do Rio, com cerca de 17 milhões de habitantes, morreram 1.400 civis até novembro do ano passado.

O novo governo facilitou a posse de armas para o cidadão comum. É uma boa ideia?

É um grave erro. Não há nenhum exemplo empírico no mundo que demonstre que o acesso à arma de fogo reduz a violência, mas o oposto. Se quer reduzir a violência, precisa incrementar o controle e dificultar o acesso legal às armas. Obviamente que essa também não é a forma adequada de abordar a violência doméstica. É possível que aumentem os casos com consequências fatais.

Uma das orientações do novo governo é que as escolas não discutam gênero e sexualidade. Essa decisão pode ter algum reflexo sobre os direitos humanos?

Claro que sim. As políticas públicas na educação devem passar pelo conhecimento científico, e não por preceitos religiosos. É um horror introduzir esse tipo de conceito na educação pública de um país. Um Estado tem a obrigação de abrir a educação ao mais alto nível de debate possível em uma sociedade democrática.

O Brasil é uma democracia, e seus programas de educação devem ser os mais amplos possíveis, com material escolar que permita a mobilidade social, porque a educação é o principal instrumento para ascensão social. O Brasil precisa competir globalmente com os altos índices de educação, e não introduzir elementos religiosos ou ideológicos em seus programas escolares.

O senhor se reuniu no começo da semana com a nova ministra dos Direitos Humanos. O que o senhor achou dela?

Tivemos uma reunião muito cordial com sua equipe. Ela nos prometeu que todos os temas que fizeram parte da agenda de direitos humanos no passado vão seguir como prioritários para seu ministério. Tomara que seja assim. Ela se comprometeu, inclusive, com temas relacionados à mulher e à comunidade LGBT, que receberão a mesma atenção do passado. 

Não pode ter sido apenas um aceno de cordialidade? 

Não sei. O que sei é que ela foi muito cordial, alegre, simpática e se comprometeu com uma agenda ampla de direitos humanos.

O perfil religioso dela não pode interferir nas questões do Estado, que é laico?

A agenda de direitos humanos deve estar guiada pelas obrigações jurídicas internacionais em direitos humanos, e não por uma visão pessoal de mundo. Me pareceu por seus gestos que ela havia entendido que uma coisa é seu trabalho pastoral e, outra é seu papel na linha de frente dos direitos humanos no Brasil. E espero que assim seja.

Antes do encontro, qual a imagem que o senhor guardava da nova ministra?

Conheci muitos ministros mesmo antes de ocuparem a pasta de Direitos Humanos, como José Gregório (1997-2000), Paulo Sérgio Pinheiro (2009-2010) e Flávia Piovesan (2016-2017). Eu não conhecia a nova ministra, e por isso não posso emitir um comentário. O que mais importa é como será o seu trabalho na prática para impulsionar os programas em favor dos direitos humanos.

Como a HRW espera atuar no Brasil nos quatro próximos quatro anos?

Com preocupação, sobretudo pela retórica utilizada pelo novo presidente para chegar ao poder. A grande pergunta é: em que medida esse discurso contra os direitos humanos será implementado?

É preocupante a Medida Provisória do Executivo que pretende monitorar ONGs que recebem ou não verba pública. Ele também insinuou que os meios de comunicação seriam objeto de controle político. Isso sugere que ele premiaria ou puniria os meios de acordo com suas críticas ao governo. Se o discurso virar prática, afetará a liberdade de imprensa e de expressão.

Mas ainda precisamos ver o que vai acontecer. Seguiremos muito atentos, como estivemos nos governos de Lula, Dilma e Fernando Henrique Cardoso.

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