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Caso de coronavírus na Cidade de Deus inspirou MV Bill compor "Quarentena"

do UOL

Colunista do UOL

28/03/2020 22h48

O rapper carioca MV Bill lançou ontem (27) o videoclipe de "Quarentena", que alcançou em 24 horas mais de 100 mil visualizações.

A rima, do cantor nascido e criado na Cidade de Deus, traz informações importantes sobre a covid-19.

Dessa vez, o "mensageiro da verdade" - alcunha dada a Bill em sua comunidade - alerta a população sobre os cuidados para evitar o contágio e critica as autoridades que minimizam a pandemia.

À coluna, o cantor explica que a missão era chegar ao maior número de pessoas, falou sobre a onda de solidariedade que cresce a cada dia visando auxiliar os mais necessitados e ainda citou a situação das comunidades que têm dificuldades em se manter em quarentena.

Muitas favelas e favelados não têm como ficar em quarentena, pois precisam trabalhar. Precisam manter o iFood do asfalto funcionando, a pessoa que vão cozinhar, o porteiro, o motorista de ônibus e de aplicativo, algumas funções que nos atendem no dia a dia que não têm como ficar em casa. Essas pessoas precisam ter a consciência para se cuidarem bastante para não levarem para casa, além do seu sustento, uma doença que possa contaminar a sua família e quem sabe a comunidade inteira pela proximidade das casas"

Bill também fala sobre o ineditismo em filmar um clipe na varanda de sua casa e como seguiu os protocolos de segurança para evitar contaminação. "Era inimaginável fazer uma música de rap gravando tudo de casa, sem precisar encontrar com as pessoas."

Leia abaixo meu papo com Bill:

Adriana: Em 24h sua música "Quarentena" teve mais de 100 mil visualizações, o que para o rap é uma ótima marca. Você esperava toda essa repercussão?
MV Bill: Sendo bem sincero, nem pensei na repercussão que a música poderia ter. Foi mais no informe que poderia chegar nas pessoas e na inspiração que bateu. Pensei também na forma como seria de passar o tempo de minha quarentena e eu prefiro que seja assim, sem pensar tanto na repercussão. Sabendo aproveita-la e curtindo-a, mas pensando mais no tipo de mensagem que pode ser dada e aproveitando mais a oportunidade que o momento tá proporcionando de forma positiva por conta da música e de forma negativa pela humanidade.

Você é da Cidade de Deus, primeira comunidade com registro de contaminação do coronavírus. Esse fato teve alguma influência ao compor essa música com notícia, realidade, ritmo e poesia?
Na verdade, eu ouvi falar do vírus pela primeira vez em dezembro. Quando surgiu o primeiro caso confirmado na Cidade de Deus, eu já tinha ouvido falar de outros quatro casos atendidos nas UPA daqui. Os médicos ainda não tinham testes e qualquer gripe e sintoma parecido com a Covid-19, a pessoa era mandada de volta para casa. Então, tem muita gente que pode estar infectada sem apresentar sintomas, as situações assintomáticas, e podem estar transmitindo para outras pessoas, porque não sabem que estão.

Tudo isso influenciou com certeza na hora de compor a letra. Fiz a música no sábado, hoje a gente tá fazendo uma semana, gravei voz no domingo aqui em casa mesmo, continuei em quarentena, e no dia seguinte mandei para o Mortão, um produtor de Goiânia. Na quarta-feira, eu estava gravando o vídeo aqui na varanda de meu apartamento. Foram muitas influências para fazer a música, mas em pouco tempo. Com certeza influenciou sim.

MV Bill no clipe de 'Quarentena' - Reprodução - Reprodução
MV Bill no clipe de "Quarentena"
Imagem: Reprodução
Você não acha que falta engajamento dos artistas no que diz respeito ao auxílio aos vulneráveis?
Eu vejo nesse momento uma rede de solidariedade grande, que acho que pode crescer ainda mais. Solidariedade nunca é demais. Mas uma rede de solidariedade que, até certo ponto, me surpreende. No momento em que o Brasil está muito polarizado e dividido, algumas pessoas estão querendo se dividir entre saúde ou economia. Eu acho que as duas coisas precisam estar equilibradas. Estão surgindo muitas pessoas que entendem que é preciso dar uma atenção maior aos mais pobres, aos que vivem em situações vulneráveis, as pessoas que já são obrigadas a ficar em quarentena e já estão passando fome. Aqui mesmo na Cidade de Deus tem um movimento chamado Frente CDD, que começou a arrecadar donativos para montar cestas básicas e leva-las para uma ala mais pobre que tem na Cidade de Deus. A Central Única das Favelas (Cufa) tem feito isso junto com outras organizações. Estão se juntando e mostrando que isso é possível. Tem outras pessoas do asfalto também, redes de supermercados e lojas estão entendendo que podem fazer uma contribuição. Essa rede que está se formando, eu estou achando bem interessante. Acho que a arte pode contribuir também com palavras e entretenimento. Ninguém é obrigado a ir por essa linha, eu fui porque é uma coisa que eu sempre tive vontade, mas uma coisa que me chama bastante atenção é esse outro lado de pessoas fazendo de forma bem espontânea.

Eu tô na torcida para que os governos não só do Brasil, mas do mundo todo, os grandes empresários não só do Brasil, mas do mundo inteiro, cuidem dos mais pobres, porque favela, gueto, lugar pobre e periferia não é só no Brasil. Alguns países aqui na América do Sul e muitos na África precisam desse plano de ajuda para que as pessoas mais pobres não acabem sofrendo mais com esse vírus que pode chegar a esse lugares devido às condições de moradia, que é bem precária. Aqui no Rio de Janeiro, alguns lugares sequer têm água potável, não tem esgoto tratado, não tem saneamento básico, que pode ser um forte disseminador. Pra que isso não aconteça, precisa ter uma força tarefa pra cuidar dessas pessoas. Nos lugares onde o vírus já foi epicentro, a gente está tendo a oportunidade de ter lições, como alguns países estão lidando de forma certa e errada com a pandemia. Aqui no Brasil, a gente está vendo isso de longe e temos a oportunidade de nos prepararmos. Aqui torço para que a preparação seja no todo. Muitas favelas e favelados não têm como ficar em quarentena, pois precisam trabalhar. Precisam manter o iFood do asfalto funcionando, a pessoa que vai cozinhar, o porteiro, o motorista de ônibus e de aplicativo, algumas funções que nos atendem no dia a dia que não têm como ficar em casa. Essas pessoas precisam ter a consciência para se cuidarem bastante para não levarem para casa, além do seu sustento, uma doença que possa contaminar a sua família e quem sabe a comunidade inteira pela proximidade das casas.

Onde foi filmado o clipe de "Quarentena" e em quanto tempo?
O clipe foi todo gravado aqui na minha casa em minha varanda. Pedi o equipamento emprestado a um amigo meu, o Rodrigo Felha, que já estivemos juntos em outros trabalhos, como no documentário "Falcão - Meninos do Tráfico", em que ele fez algumas câmeras. Ele deixou na portaria e fizemos todos os protocolos de segurança, porque estamos com muito medo de ser infectados. Ele cuida da mãe dele, eu também preciso ter contato com a minha e ambas têm mais de 60 anos. Peguei a câmera, higienizei, ele já tinha me ensinado um pouco a mexer e eu já tinha uma noção de ângulo. Fiz as imagens e deixei na portaria. Ele pegou de volta, higienizou o equipamento e fez a montagem das imagens junto com Jefferson Teófilo. Pra mim foi uma oportunidade de usar as ferramentas que a internet nos proporciona. Era inimaginável fazer uma música de rap gravando tudo de casa, sem precisar encontrar com as pessoas. Ao invés de fazer algo que ficasse marcado só para as redes sociais, eu quis compor uma música, gravando de forma profissional, com registro, pra ficar marcado na história. Mesmo sabendo que esse conteúdo pode ser modificado a qualquer momento, porque a Covid faz os números mudarem e toda hora temos novidades, na semana que vem pode ter quarentena ou não, por isso é uma canção muito do hoje e do agora. Vai ficar marcada pra sempre, pois esse é um momento que jamais esqueceremos.

Como você está a sua rotina na quarentena?
Minha quarentena, eu tô tirando de boa na medida do possível, porque não é bom pra ninguém ficar dentro de casa sem poder sair. Ainda mais aqui no Rio de Janeiro em que nosso lifestyle é de ficar na rua, uma vida muito urbana. Mas é um sacrifício que a gente tem de fazer, porque foi o que a gente viu dar certo e fez segurar a curva em alguns lugares. É uma recomendação da Organização Mundial da Saúde e do próprio Ministério da Saúde, eu tô seguindo esse caminho que acho que é o melhor. Tô vendo muitas pessoas em casa, acho muito inteligente e pertinente quando as autoridades pedem para as pessoas ficarem em casa e entendo também as pessoas que precisam sair e não têm como ficar em casa seja para trabalhar ou alguma função não necessariamente hospitalar, mas que precisam tá na rua trabalhando. O quanto eu puder ficar em casa, eu vou permanecer por aqui, respeitando a determinação da OMS. Vou continuar criando, pensando em novos projetos e em breve, com certeza, deve ter mais pensamentos em forma de música.

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