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Agente penitenciário explica o que Carcereiros tem de real e de "mentira"

O agente penitenciário Igor Rocha - Reprodução
O agente penitenciário Igor Rocha Imagem: Reprodução
do UOL

Em depoimento a Leonardo Rodrigues

Do UOL, em São Paulo

10/12/2019 04h00

Agente penitenciário do presídio Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos, Igor Rocha trabalha há 21 anos com detentos, desde que viu sua empresa de marcenaria falir e se viu obrigado a mudar de profissão. Nesse ambiente inóspito, ele já presenciou rebeliões e mortes. Já foi feito de refém e desenvolveu depressão.

Hoje, sua vida é outra. Criador do grupo Grupo Teatral Do Lado de Cá, que atua dentro das penitenciárias, ele participou da produção da série e do filme Carcereiros, que está em cartaz nos cinemas, atuando como consultor e ministrando palestras.

Para ele, diferentemente dos primeiros episódios da série da Globo, o longa vai além da realidade dos presídios, dramatizando situações e a forma como os presos são separados na penitenciária. Mas as tensões, as dificuldades de trabalho e as guerras de facções são assustadoramente reais.

Leia abaixo o depoimento de Igor Rocha.

Minha história

Eu e vários colegas já passamos por momentos difíceis dentro da penitenciária. Fiquei com depressão, vi muitas mortes. Fiquei muito doente. Aconteceu de eu presenciar uma morte brutal na minha frente. E no outro dia eu tinha de sair de casa para trabalhar. Não havia como pegar um afastamento. Sofri muito com isso, passei por psicólogos, tomei remédios.

Quando a gente está no meio de uma rebelião, a gente sofre tortura psicológica. Você chega para trabalhar e não sabe se vai morrer ou não. E não é só lá dentro. É na rua também. É uma pressão muito grande ter que cuidar de 2.200 homens, de toda uma população carcerária tendo pouco funcionário.

Várias tragédias aconteceram, até que, em 2006, São Paulo parou com os ataques do PCC. Pouco antes disso, em 2003, quando estava muito doente, conheci meu mestre, o teatrólogo Augusto Boal. Por trabalhar na área de educação do presídio, ele me convidou para criar um curso de teatro com outros funcionários. Isso mudou totalmente minha vida.

O ator Rodrigo Lombardi e o agente Igor Rocha - Acervo Pessoal - Acervo Pessoal
O ator Rodrigo Lombardi e o agente Igor Rocha
Imagem: Acervo Pessoal

No começo do projeto, ele existia para ter um diálogo entre o cárcere e a sociedade, para poder sobreviver no cárcere. Aos poucos, começamos a entender a problemática carcerária. O ser humano. De 2010 para cá, vários presos passaram pelo teatro e fizeram vários filmes e séries, como Sintonia, Na Quebrada e Carcereiros. Temos muito orgulho disso.

O filme é real?

Carcereiros se inspirou no documentário de Drauzio Varela, com depoimentos nossos, agentes penitenciários. Os 11 primeiros episódios tinham uma realidade maior, com muitas histórias que realmente nós vimos. A partir daí, eles começaram a ter um pouco de licença poética nas histórias. Já o filme, que foi gravado junto da série, é muito mais voltado à ficção.

Eles mostram preso político, por exemplo, ficando do lado ou muito perto de preso comum. Isso não acontece. Eles queriam aproveitar o gancho da política e jogar mais emoção na história, como é o gosto do brasileiro. Mas a realidade não é bem essa.

O próprio Rodrigo Lombardi disse que o filme foi uma espécie de "brincadeira", para dar uma "descontraída" do que era feito na série. Mas, mesmo assim, dá para dizer que existem muitas coisas reais ali. Por exemplo, a questão das disputas de facções, que realmente acontecem de forma muito parecida.

Mas, além da história, do roteiro, tudo o que se vê ali sobre o ambiente penitenciário é muito real. O personagem do Rodrigo Lombardi, o Adriano, foi inspirado em um agente penitenciário real. E ele ali cumpre o papel exato de um herói, que resume a vida de muitos de nós, com todas as dificuldades pelas quais passamos.

Igor Rocha - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Igor Rocha
Imagem: Arquivo Pessoal

O(s) problema(s) do sistema carcerário

Existe uma sociedade muito grande dentro do sistema carcerário. A educação é ruim aqui fora, imagina para quem está lá dentro. Somos todos técnicos formados e tentamos cumprir a lei de execução penal, como prevê no artigo. Mas as coisas são muito precárias.

Para nós, dentro de uma cadeia, existe apenas a palavra. A palavra vale mais que um tiro de fuzil. Se eu não cumpro com a minha palavra, os presos também vão descumprir com a palavra deles. É assim que funciona e assim que conseguimos sobreviver em meio aos conflitos, que às vezes são triviais, acontecendo sem ninguém saber.

Dentro da unidade prisional você tem gente muito pobre. Muito cara que nasceu e só conhece o mal. Que tem o pai preso. Que viveu com a mãe trabalhando fora. Ele é criado num lar quebrado, com muita tranqueira. Não conhece o "outro lado". Ele comete o erro e, quando entra, se depara com o sistema carcerário difícil.

Fizemos o projeto de teatro também para tentar mudar essa ideia. Todos são seres humanos que sofrem

Ainda estamos muito atrasados em termos de sistema prisional no Brasil. Coisa de dez, 20 anos. Quando se constrói um presídio, por exemplo, ninguém chama quem conhece o sistema carcerário para opinar. Chama o projetista, arquiteto e engenheiro, mas não nos chamam. Daí, percebem que precisam reformar a cadeia depois porque não existe segurança adequada.

Muitas coisas precisam ser modificadas e, na realidade, o agente penitenciário é um caco no meio de tudo isso. A sociedade pensa isso da gente. Ou ele é corrupto ou ele é carrasco. E pronto. Fizemos o projeto de teatro também para tentar mudar essa ideia. Todos são seres humanos que sofrem.

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