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O que acontece quando a comida some das prateleiras

Richard Gray - BBC Future

23/06/2019 17h58

Nossa sociedade moderna depende de cadeias de distribuição alimentar complexas e modernas. O que aconteceria se elas desmoronassem repentinamente?

Aconteceu quase da noite para o dia. Rešad Trbonja era um adolescente comum que crescia em uma cidade próspera e moderna, que poucos anos antes abrigara as Olimpíadas de Inverno. Então, em 5 de abril de 1992, o lugar que ele chamava de casa foi repentinamente desconectado do mundo exterior.

O que ele - e outras quase 400 mil pessoas presas dentro de Sarajevo pelo Exército Sérvio-Bósnio - não podiam imaginar é que esse só seria o começo de um pesadelo que duraria quase quatro anos. No cerco a Sarajevo, quem ficou confinado dentro da cidade viu seu cotidiano mudar com a presença de tanques e snipers. O simples ato de atravessar a rua ou fazer fila para o pão se tornaria uma experiência de vida ou morte; os soldados posicionados nas colinas ao redor da cidade faziam disparos contra população local.

Mas enquanto balas e bombas eram uma ameaça constante, Trbonja e seus vizinhos enfrentaram outro inimigo muito mais silencioso: a fome.

"A comida começou a se esgotar quase imediatamente", lembra Trbonja, que tinha 19 anos na época e agora ensina crianças sobre a guerra na Bósnia. "O pouco de comida nas lojas acabou muito rápido e muitas delas foram saqueadas. Uma dispensa e uma geladeira em casa não são suficientes quando você tem que alimentar uma família inteira, então não demorou muito para que tudo acabasse. "

Quando o cerco terminou em janeiro de 1996, mais de 11,5 mil pessoas em Sarajevo haviam morrido. Muitas por causa de estilhaços, explosivos ou disparos. Mas, sem dúvida, algumas de frio (gás e eletricidade foram cortados) e fome.

Mas Trbonja lembra que, apesar de todo o sofrimento, o povo de Sarajevo resistiu.

"As pessoas que viviam nos subúrbios compartilhavam legumes e verduras que cultivavam nos quintais de casa", diz. "Vizinhos trocavam sementes para plantar em caixas de flores de suas varandas. O sabor daqueles tomates cultivados em sua própria varanda é inesquecível."

Enquanto a comunidade internacional hesitava sobre como intervir no conflito, as tropas canadenses - atuando como parte de uma força de paz das Nações Unidas - conseguiram reabrir o aeroporto de Sarajevo. Foi um passo crucial. Durante o cerco, mais de 12 mil voos de ajuda humanitária da ONU levaram à cidade 160 mil toneladas de alimentos, remédios e outros produtos.

"Sem a ajuda humanitária, Sarajevo não existiria mais", diz Trbonja. "Noventa por cento da população vivia de alimentos distribuídos pela ONU. Aqueles que eram extremamente ricos podiam trocar joias, quadros, qualquer objeto de valor por comida extra no mercado negro.

Já os que não tinham posses precisavam encontrar outras maneiras para comer. Trbonja, que como muitos jovens de Sarajevo pegou em armas em uma tentativa desesperada de defender sua família e sua casa, doava sangue no hospital da cidade quando voltava para casa depois de lutar. Em troca, recebia uma lata de carne.

"Também tivemos que encontrar outras formas", diz ele. "Pesquisávamos nos livros para descobrir quais plantas eram comestíveis para podermos fazer saladas com flores. Houve dias em que só tínhamos uma fatia de pão e chá e outros nada. Estávamos realmente lutando por nossa sobrevivência a cada dia".

Conversando com Trbonja, é difícil acreditar que isso tenha ocorrido no coração da Europa há menos de 30 anos. Mas relatos como os dele também não fazem parte da história oficial.

Graças aos conflitos, incertezas políticas e seca, o mundo está atualmente passando por sua pior crise de fome desde a Segunda Guerra Mundial. De acordo com o Sistema de Alerta Antecipado de Fome (FEWS Net, na sigla em inglês), uma organização dos EUA que prevê emergências humanitárias, 85 milhões de pessoas precisarão de assistência alimentar de emergência em 2019 em 46 países - o equivalente às populações do Reino Unido, Grécia e Portugal somadas. Estima-se que hoje 124 milhões de pessoas enfrentem crises alimentares, de acordo com o Programa Alimentar Mundial da ONU.

O número de pessoas em risco de fome aumentou 80% desde 2015, com o Sudão do Sul, o Iêmen, o noroeste da Nigéria e o Afeganistão entre os mais atingidos.

Mas, enquanto imagens de crianças famintas durante a crise etíope da década de 1980 permanecem gravadas no imaginário popular, as "fomes modernas" estão passando quase despercebidas.

Parte da razão é que o mundo parece ter se convencido de que não existe mais fome. É verdade que as taxas mundiais diminuíram. De acordo com Alex de Waal, diretor-executivo da Fundação da Paz Mundial da Universidade Tufts, em Boston, no Estado americano de Massachusetts, 1 milhão de pessoas morreram de fome por ano nos 100 anos que antecederam a década de 1980.

"Desde então, a taxa de mortalidade caiu para 5%, 10% disso", diz de Waal. "Não tínhamos mais sociedades inteiras morrendo de fome. O crescimento dos mercados globais, melhor infra-estrutura e sistemas humanitários quase acabou com a fome. Até os últimos anos, foi assim."

Podemos encontrar as nossas prateleiras de supermercados empilhadas com produtos de todo o mundo, mesmo de países vizinhos que sofrem de fome

Guerra e má gestão

A fome está ressurgindo como uma ameaça. O motivo? Guerra - e má gestão.

"É difícil seres humanos passarem realmente fome, pois somos tremendamente resilientes", diz Waal. "Você precisa de um governo realmente ruim que busque ativamente o tipo de política que priva as pessoas daquilo que precisam e degradam o meio ambiente. É isso que explica as fomes que estamos vendo em lugares como a Síria, o Sudão do Sul e o Iêmen."

Trata-se de uma das ironias do nosso mundo moderno. Graças às cadeias globais alimentares e ao comércio internacional, podemos transportar produtos pelos oceanos em apenas alguns dias. Podemos encontrar nossas prateleiras de supermercado repletas de mercadorias de todo o mundo.

Mas mesmo nas nações desenvolvidas, a perspectiva de escassez de alimentos talvez não seja tão distante quanto gostaríamos de acreditar. As cadeias alimentares internacionais que fornecem nossos produtos prediletos são precariamente equilibradas.

E não é preciso uma catástrofe como guerra ou seca para isso acontecer. Na Venezuela, país com ricas reservas de petróleo, uma crise política impulsionada pela disparada da inflação levou à escassez de alimentos e medicamentos, forçando famílias a viverem de carne podre. Mais de 3 milhões de venezuelanos já deixaram o país.

Outro país a enfrentar a escassez de alimentos foi a Grécia, durante a crise da zona do euro.

Enquanto isso, a doença, o mau tempo e o aumento dos preços vem fazendo desaparecer uma série de culturas agrícolas. Há cerca de dez anos, o aumento do preço do arroz espalhou pânico nas Filipinas e em outros países asiáticos, causando uma crise de abastecimento deste alimento básico. Em 2017, o mau tempo na Europa provocou o aumento do preço de muitos legumes e verduras. Além disso, houve também uma escassez mundial de abacates quando vários países foram atingidos por safras ruins.

Os protestos contra o aumento dos combustíveis que ocorreram no Reino Unido em 2000, quando agricultores e transportadoras bloquearam as refinarias de petróleo e depósitos, levaram os supermercados a racionar os alimentos enquanto não recebiam seus pedidos. Assim, puderam reabastecer suas prateleiras. Até mesmo o aumento do estoque de alimentos por escolas, asilos, hospitais e pessimistas por causa do Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, mostram o efeito que uma mera boataria pode ter.

É importante esclarecer que a escassez de alimentos não leva à fome e que a maioria das crises de fome no mundo não é causada pela escassez de alimentos - e sim pela falta de acesso à comida. Somente quando a carência alimentar severa se transforma em uma experiência de massa que chamamos realmente de fome.

Nos EUA, um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, quase 12% das famílias não tem acesso adequado a comida por questões financeiras ou outros recursos

Mas a insegurança alimentar é mais comum do que muitos de nós pensamos. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estima haver quase 821 milhões de pessoas subnutridas no mundo. Nos EUA, um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, quase 12% dos domicílios são classificados como inseguros do ponto de vista alimentar e cerca de 6,5 milhões de crianças não têm acesso a uma alimentação adequada.

Dores da fome

O que a fome faz com você? Devido a questões éticas envolvendo experimentos, os cientistas têm que se basear nas experiências e relatos daqueles que sobreviveram a períodos de fome.

"A curto prazo, há perda de peso à medida que você metaboliza a gordura extra e os tecidos musculares", diz Bradley Elliott, fisiologista da Universidade de Westminster, no Reino Unido, que estudou o efeito da fome em um homem que passou 50 dias sem comida. O corpo humano é capaz de lidar com níveis surpreendentes de perda de peso: quando o corpo perde 20% do seu peso, consome 50% menos energia. A temperatura corporal cai, enquanto a letargia e a apatia tomam conta. Ao mesmo tempo, o corpo tenta conservar a pouca energia que tem. Eventualmente, no entanto, os próprios órgãos começam a desperdiçar energia, todos com exceção do cérebro, que parece se adaptar para se proteger da fome.

"Problemas no fígado e nos rins também parecem ocorrer", diz Elliot. "A regulação da pressão arterial também fica prejudicada, o que significa que as pessoas podem desmaiar mais facilmente".

À medida que vitaminas e minerais começam a faltar, aparecem doenças como o escorbuto e a pelagra. As crianças tendem a ser mais vulneráveis do que os adultos, mostrando rapidamente os sinais de enfraquecimento e sucumbindo a doenças infecciosas, segundo a Rita Bhatia, do Programa Alimentar Mundial, que analisou a severa escassez de alimentos na Coreia do Norte nos anos 90.

A sobrevivência sem comida depende do peso corporal de uma pessoa, das suas reservas calóricas em gordura e de outros problemas de saúde dos quais ela pode estar sofrendo. As mulheres tendem a ser mais resistentes do que os homens. Mas, em geral, a maioria das pessoas morrerá se o seu peso corporal cair para metade do índice de massa corporal normal - o que geralmente ocorre após 45-61 dias sem comida.

Para aqueles que sobrevivem, podem haver sequelas permanentes.

A fome a longo prazo pode afetar a altura das pessoas, levando ao nanismo em populações que enfrentaram fome e graves carências alimentares. Aqueles que tinham entre um e três anos no início da Grande Fome na China, onde cerca de 30 milhões de pessoas morreram entre 1959-1961, se tornaram adultos em média 2,1cm mais baixos do que aqueles que não cresceram durante a fome. Eles também tinham braços mais finos, eram 4,4% mais leves e, em média, atingiram níveis educacionais mais baixos. Os abortos entre as mulheres grávidas também aumentaram.

Bebês que sobreviveram à fome na Etiópia em meados da década de 1980 tiveram maior probabilidade de sofrer doenças na vida adulta, enquanto outros estudos mostraram que uma longa lista de problemas de saúde, como pressão alta, diabetes e doenças cardíacas são mais comuns em crianças que crescem em períodos de fome.

Mas o impacto da fome vai além da saúde física. Durante a Grande fome chinesa, o rendimento do trabalho caiu 25%, afetando drasticamente a produção econômica do país. As crianças que sobreviveram à fome etíope ganharam de 3% a 8% menos por ano ao longo de sua vida do que seus contemporâneos.

Embora esses estudos possam fornecer algumas pistas, não conseguem transmitir a agonia do que é realmente passar fome.

Oonagh Walsh, professora de estudos de gênero na Glasgow Caledonian University, no Reino Unido, descobriu que o número de pessoas internadas em asilos psiquiátricos disparou durante e imediatamente após a fome irlandesa entre 1845-1851.

"Houve um enorme aumento nas internações em asilos de uma população que foi efetivamente reduzida pela metade durante esse período", diz ela. "Alguns deles talvez fossem pessoas que procuravam uma refeição decente e sabiam que iam encontrá-la em um asilo. Mas também houve uma mudança na maneira como as pessoas pensavam".

"As pessoas rapidamente se tornaram muito fatalistas. A fome foi pior na costa oeste, onde eles têm acesso ao mar e aos peixes. O que não faz nenhum sentido até que você percebe que as pessoas venderam tudo o que tinham, incluindo suas redes e barcos. A população faminta passou a comer pássaros, grama, ervas daninhas e palha para sobreviver".

Mecanismos de enfrentamento

Situação semelhante aconteceu durante a fome holandesa durante a Segunda Guerra Mundial. Entre o inverno e início da primavera de 1944-1945, a população faminta começou a se alimentar de plantas e cogumelos na tentativa de sobreviver.

"Na Holanda, um país relativamente rico e densamente povoado, com pouca vegetação natural, o forrageamento (busca e exploração de recursos alimentares) já não era uma prática comum quando a 2ª Guerra Mundial começou", diz Tinde van Andel, professor de história da botânica na Universidade de Leiden, na Holanda. As pessoas recorreram a antigos livros de receitas sobre a preparação de plantas silvestres e a parentes idosos para aprender a coletar e cozinhar alimentos que eram seguros para alimentação. Eles consumiram beterraba, bulbos de tulipa, cascas de batata, urtigas e fungos selvagens.

"Grupos urbanos começaram a fazer excursões para o interior", diz van Andel. "Qualquer um que pudesse ter acesso a um pedaço de terra transformou-o em uma horta. As pessoas criavam coelhos nos pátios da cidade. Também roubaram forragem de fazendas ou resíduos agrícolas ".

Muitos dos famosos parques reais de Londres foram loteados e transformados em jardins durante os dois conflitos, enquanto as pessoas tentavam se alimentar. Se hoje a rúcula é um ingrediente glamuroso em qualquer salada, seu uso teve origem durante a 2ª Guerra Mundial, quando os italianos passaram a buscar comida no interior do país.

Mais recentemente, a ameaça de escassez de alimentos fez explodir o número de pessoas que buscam cursos para aprender sobre agricultura.

Segundo Alex de Waal, as populações rurais tendem a sobreviver melhor à fome do que as das áreas urbanas.

"Nas áreas tradicionais propensas à fome, as pessoas têm suas próprias fazendas e suas próprias formas de sobrevivência", diz. "Elas guardam também conhecimento. Na África, as avós saberão sobre alimentos, frutas e nozes que podem obter da floresta. Essas pessoas tendem a se sair muito melhor".

Para Rešad Trbonja, a memória daquele pesadelo de 47 meses vividos em 1992 nunca vai desaparecer. Mas em meio ao horror e à miséria por que passou, ele diz acreditar que sua cidade sobreviveu à guerra e à escassez de alimentos ao alimentar-se de maneira diferente.

"Toda Sarajevo tornou-se uma enorme família", lembra ele. "Fomos muito gentis uns com os outros, compartilhando tudo. Nunca tinha visto isso. Tenho muito privilégio de que, em um momento de desespero e miséria, vi minha cidade mais bonita do que nunca".


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