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30 anos depois, Batman mostra que idade pesa mais que memória afetiva

Batman e Coringa se enfrentam no clímax de "Batman" (1989) - Divulgação
Batman e Coringa se enfrentam no clímax de "Batman" (1989)
Imagem: Divulgação
do UOL

Eduardo Pereira

Do UOL, em São Paulo

23/06/2019 04h00

Quando estreou nos cinemas, há 30 anos, Batman surpreendeu com uma história de super-herói sombria, distante do otimismo e positividade impressos na mente do grande público depois de Superman (1978). Sob a direção de Tim Burton, foi apresentado um herói torturado e mais confortável longe das pessoas que protege do que próximo a elas. Era mais humano, mais intrigante, mas também mais frio, e até deprimente.

Revisitar o longa-metragem hoje, quando cineastas e grandes estúdios conseguem cada vez mais misturar gêneros e influências na adaptação bem-sucedida de personagens da Marvel ou DC, é encontrar um produto experimental que acerta e erra na mesma proporção. Em retrospecto, Batman funciona como uma introdução ao universo hiper-realista do Homem-Morcego, mas falha em fazer jus ao personagem e ao seu maior rival, tudo por ter de se ajustar a clichês do cinema de sua época.

Não que isso seja culpa da equipe criativa - para chegar a ser rodado, o filme naturalmente teria de atender às expectativas comerciais da Waner Bros. para uma nova franquia - mas é lamentável que haja uma dissonância tão grande entre a essência solitária do Batman (Michael Keaton) e a necessidade de tê-lo envolvido em um romance; ou entre a natureza caótica e misteriosa do vilão, Coringa (Jack Nicholson), e a necessidade de mudá-la com uma identidade e origem definidas.

Para mais uma vez usar Superman como exemplo: mesmo sendo um filme ainda mais velho e, logo, mais datado em efeitos visuais ou ritmo narrativo, trata-se de uma história - o amor entre um órfão alienígena e uma intrépida humana - que serve à proposta de uma aventura romântica com tons de ficção científica. Não há medo, portanto, em colocar Clark Kent (Christopher Reeve) em primeiro plano, como dono de sua narrativa, e deixá-la florescer aos olhos do espectador. O mesmo não acontece em Batman.

Herói demora para tomar destaque

Ao invés de sermos conduzidos pela história pelo ponto de vista de Bruce Wayne, o filme prefere usar a repórter Vicky Vale (Kim Basinger) e seu colega Alexander Knox (Robert Wuhl) como fios-condutores, nos levando aos poucos ao encontro do Batman e à verdade de sua origem. Paralelamente, somos apresentados ao gângster Jack Napier, que se torna o Coringa ao cruzar caminhos com o Homem-Morcego, passando a ser movido pela necessidade de vingar sua vaidade, uma vez que acaba terrivelmente desfigurado.

São escolhas cautelosas para justificar de forma racional personagens que são muito mais poderosos como metáforas para sentimentos abstratos. Chega a ser esquizofrênico que o torturado e silencioso Bruce Wayne se apaixone por Vicky no primeiro terço do filme, e passe a atuar mais como um guarda-costas da repórter - que também está na mira do Coringa - do que como o bravo defensor da cidade de Gotham. Mas é também um caminho para justificar a atenção dada à jornalista desde o início do longa.

Já o Príncipe Palhaço do Crime, que deveria ser um agente do caos, da discórdia e da sua própria ensandecida vontade (tudo como forma de expor a ironia contida nas incoerências da vida, acaba reduzido a um mafioso extravagante. Mas isso ainda não é o pior. Quando o filme revela seu maior "plot twist" - o de que foi Napier quem matou os pais de Bruce Wayne, tornando-se assim o criador da criatura que criou o Coringa (pois é) - o próprio Batman passa a ter sua motivação reduzida à vingança.

Momentos antes do clímax do filme, o herói pega o vilão pelo colarinho e afirma: "Eu vou te matar". Não é uma chegada ao limite forçada pelos horrores aos quais o palhaço submeteu a população de Gotham, mas por seu próprio trauma pessoal - numa descaracterização total do que define o Batman (a luta eterna contra um inimigo que não tem rosto ou forma específica: o crime) ou qualquer outro super-herói (o altruísmo).

Jack Nicholson como o Coringa - Reprodução - Reprodução
Jack Nicholson viveu versão gângster do Coringa em "Batman" (1989)
Imagem: Reprodução

Donzela em perigo

No meio de tudo isso, a personagem de Basinger recebe destaque demais e desenvolvimento de menos. Sabemos que ela é uma fotógrafa premiada por seu trabalho no fictício país de Corto Maltês (o filme faz referência ao autor Hugo Pratt ao legitimar o território, criado por Frank Miller para homenageá-lo nos quadrinhos da DC), e que ela se apaixonou por Bruce Wayne "no primeiro momento em que se viram". Mas só. De resto, Vicky Vale é apenas a donzela em perigo usada para cruzar os caminhos de Batman e Coringa.

É muito, muito pouco para alguém que não só abre o filme como condutora do espectador, mas que ocupa quase tanto tempo de tela quanto o personagem-título, protagonizando um romance com Wayne que é mais apressado que adolescente no motel, e menos crível que promessa política em campanha.

Incomoda, embora não seja exclusividade de Batman (todos os Homem-Aranha de Sam Raimi, o primeiro X-Men e tantos outros filmes de herói fizeram igual) ter a principal personagem feminina servindo como mero acessório ao herói.

Em alguns momentos, a insistência de Vicky em ficar com Wayne, apesar de todos os indicativos de que essa não é uma boa ideia, chega a ser digna de riso. Quando a jornalista simplesmente aparece dentro da supersecreta Batcaverna, trazida pelo fiel mordomo Alfred (Michael Cogh), fica claro que os roteiristas abdicaram de toda e qualquer lógica quanto ao romance.

Kim Basinger e Jack Nicholson - Divulgação - Divulgação
Como Vicky Vale, Kim Basinger acaba é usada como motivação para Batman enfrentar o Coringa
Imagem: Divulgação

Filme policial, suspense, drama ou romance?

É difícil, também, localizar onde o filme se situa enquanto gênero. Ele é, em alguns momentos, um "neo-noir", com gângsteres, loiras fatais e intrigas políticas. Em outros, um suspense que resgata elementos de filmes clássicos de monstros (sim, especialmente vampiros), com figuras nas sombras, torres sinistras e torturas físicas e psicológicas. Por fim, é também uma homenagem ao humor e breguice que, até então, haviam marcado as produções do Homem-Morcego na Sétima Arte.

Ação? Não há tanta para justificar a alcunha. Talvez aventura, mas falta muito do fascínio próprio ao gênero. É mais fácil enxergá-lo como um romance distorcido.

Pegue, por exemplo, a passagem em que o Coringa engana Vicky Vale com um jantar marcado em um museu. Ela espera encontrar Bruce Wayne, mas é surpreendida pela gangue do palhaço, que invade o local dançando ao som de Prince e destruindo com litros e mais litros de tinta (quase) todo o acervo de pinturas e esculturas. É bizarro, é hilário e divertido, mas dum jeito que é impossível não lembrar do saudoso Cesar Romero na série de TV dos anos 60. Na sequência, entretanto, o Coringa de Nicholson revela o rosto desfigurado por ácido de sua amante, numa mudança brusca de tom que parece mais fruto de descuido que de deliberação artística.

Não soa como culpa de Burton, entretanto. Antes de Batman chegar aos cinemas, a última produção do Homem-Morcego nas telas grandes tinha sido justamente a versão longa-metragem da série protagonizada por Adam West. Incumbido de fazer a ponte entre a visão otimista e descomprometida do personagem nos anos 1960, era natural que o filme prestasse homenagem e referenciasse o passado - só não era esperado que a disparidade temática ficasse tão evidente.

Michelle Pfeiffer como a Mulher Gato - Reprodução - Reprodução
Em "Batman: O Retorno", par com a Mulher-Gato funciona e respeita essência de personagens
Imagem: Reprodução

Em Batman: O Retorno (1992), Burton negociou com a Warner Bros. para ter mais poder criativo, e o resultado foi justamente uma visão mais pura de um Batman sombrio e torturado, destacado sempre em primeiro plano e com uma subtrama romântica que fazia sentido tanto para ele, quanto para seu par: a Mulher-Gato.

A sequência acaba sendo um filme superior em todos os sentidos: muito mais coeso, impactante e, por fim, honesto com a visão criativa do diretor - e menos comprometido pelas aspirações comerciais do estúdio. Não à toa, Burton não retornaria para as duas próximas sequências, com Joel Schumacher levando a franquia ao declínio com uma abordagem mais lucrativa, mas muito mais infantil e, para economia de termos mais pesados, burra (como perdoar os batmamilos, ou o batcartão de crédito?).

Um visual fascinante, um elenco brilhante

Apesar dos problemas estruturais, temáticos e narrativos que ficam mais claros ao longo dos anos, "Batman" ainda se sustenta graças ao talento técnico não só de seu diretor, como também de um elenco escalado de forma precisa.

Como dar de ombros a um filme que constrói uma cidade anacrônica como Gotham: repleta de enormes construções góticas, carros típicos dos anos 1970, roupas dos anos 1940 e música dos anos 1980? Que referencia visualmente clássicos como Nosferatu (1922), ou O Homem Que Ri (1928). Que criou visuais e assinaturas musicais tão influentes, que serviram para produzir a maior animação do Homem-Morcego de todos os tempos: Batman: A Série Animada?

Batman, Vicky Vale e o Batmóvel - Divulgação - Divulgação
O visual do Batmóvel em "Batman" também tornou-se icônico, influenciando gerações
Imagem: Divulgação

É impossível. E mais ainda quando se observa a atuação sutil de Michael Keaton, como um Bruce Wayne que parece relaxado, "gente como a gente", só para revelar-se envolto em uma sutil fachada para um homem que vê o peso do mundo em seus ombros. Ele encarna um Batman de voz sussurrada, poucas palavras, mais interessado em agir do que em discursar sobre símbolos e representatividade (nesse quesito, incorporando melhor o personagem até que o celebrado Christian Bale, nos anos 2000).

Não há, também, como não louvar a frenética energia e o humor cru que Jack Nicholson empresta para o Palhaço Príncipe do Crime. Toda cena com ele em tela é um prazer de ser assistida, mesmo que aquele não seja, em essência, o Coringa da mitologia da DC Comics. E o que falar do Alfred afável e paternal que Michael Cough imortalizou? Não foi por acaso que ele foi mantido no papel até "Batman e Robin" (1997).

Já Kim Basinger faz o seu melhor para adicionar camadas à genérica Vicky Vale, e consegue na base de puro carisma elevar cenas que, com uma atriz menos capaz, seriam difíceis de serem assistidas. Em uma passagem de rara eficiência no filme, ela, Bruce e Alfred conversam na dispensa da Mansão Wayne, e assim o filme acerta na condução da relação dos três. Pena ser só aí.

No final das contas, três décadas depois de chegar aos cinemas e abrir caminho para que os filmes de super-heróis pudessem tomar novas formas, Batman faz jus à sua idade tanto em seus pontos fortes, quanto fracos. É um filme que para sempre terá seu espaço no coração de fãs e na trajetória das histórias em quadrinhos nos cinemas, mas que ano após ano fica mais distante do que poderíamos chamar de bom.

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