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Crise na Venezuela: orgulho nacional, música clássica vira trampolim para quem sonha deixar país em crise

Marcia Carmo - De Buenos Aires para a BBC News Brasil

20/01/2019 20h17

'Passei a ser procurada, principalmente, por aqueles que têm pressa para sair da Venezuela', conta professora de viola em Caracas em entrevista à BBC News Brasil

A grave crise socioeconômica na Venezuela, que tem castigado a população com altos índices de pobreza, criou também diversos obstáculos aos músicos locais, que sobrevivem da atividade. Ainda assim, a profissão conseguiu renovar seu status de "tábua de salvação" para diversos venezuelanos. Para maestros, professores e jovens músicos entrevistados pela BBC News Brasil, a música virou o equivalente a um passaporte para desembarcar em outro país com maior possibilidade de conseguir oportunidade profissional.

E não é a primeira vez que tal movimento acontece. Do país caribenho, que a partir dos anos 1970 ampliou sua forte tradição musical com um sistema de ensino que formou quase 1 milhão de pessoas, saíram músicos que hoje integram orquestras e grupos musicais na Argentina, no Chile, no Peru, nos Estados Unidos, além de países europeus.

Adriana Virgüez Cruz, 50 anos e que se dedica à música desde os 9, dá aulas de viola e vê em seus alunos em Caracas um reflexo do desencanto que domina o país: jovens sonham em se tornar músicos profissionais para aumentar as chances de migrar além das fronteiras.

"Os jovens músicos venezuelanos acham que um maior preparo aqui aumenta mais as chances lá fora. Passei a ser procurada, principalmente, por aqueles que têm pressa para sair da Venezuela", contou a professora de viola em entrevista à BBC News Brasil. Com formação na Venezuela e na Espanha, Cruz vendeu todas as suas joias e diversas roupas para complementar o orçamento doméstico e continuar dando aulas durante a recessão.

Latin Vox Machine

O saxofonista e também músico de fagote, César Pérez, de 33 anos, desembarcou em Buenos Aires há seis meses com um objetivo claro: fazer parte da orquestra Latin Vox Machine, na qual sua irmã, também imigrante, tocava oboé. "Cheguei aqui e fui direto procurar o criador da orquestra", contou Pérez, que tem mestrado em música. Hoje, além de tocar em lugares públicos, como o metrô, ele é coordenador da orquestra e quer continuar os estudos acadêmicos na capital argentina.

A Latin Vox Machine é uma ideia do pianista e produtor musical venezuelano Omar Zambrano, de 37 anos, que também deixou sua terra natal há três anos. "Eu vim pra cá sem trabalho e queria primeiro entender a cidade. Mas um dia estava no metrô e vi uns jovens, bem novinhos, tocando instrumentos clássicos. A trompa francesa foi o que mais chamou minha atenção", contou Zambrano à BBC News Brasil.

O produtor conversou com os jovens músicos e, com esse grupo e outros músicos, lançou a orquestra em 2017. "Mais do que uma orquestra é até uma forma de contenção emocional para todos nós porque nos reunimos com frequência para os ensaios e as apresentações. Um músico precisa muito praticar a música, ainda mais sendo imigrante", disse Zambrano.

Até pouco tempo, a orquestra tinha 35 integrantes. No fim do ano passado, passou a contar com 180 membros, incluindo músicos e coro, entre eles argentinos, venezuelanos, peruanos, chilenos e sírios. Em ascensão, eles realizaram apresentações em algumas das principais salas de concerto da cidade e têm outras quatro grandes apresentações agendadas para este ano na capital argentina.

"O Sistema"

Oriundos de lugares diferentes da Venezuela (Maracaibo, Barquisimeto e Maracay), os músicos Omar Zambrano, César Pérez e Adriana Cruz têm algo em comum entre eles e entre milhares de venezuelanos.

Eles foram alunos do chamado 'El Sistema' (O Sistema), uma instituição pública de ensino musical criada em 1975 pelo músico José Antonio Abreu (1939-2018). O objetivo do 'Sistema' (Sistema Nacional de Orquestras da Venezuela) é "a inclusão social e o ensino da cidadania", através da música clássica, para crianças e jovens de diferentes camadas sociais, como definiram ex-alunos.

Na Venezuela, graças ao Sistema, passou a ser comum ver crianças, que não foram a um conservatório, tocando peças musicais clássicas, como as de Tchaikovsky, nos bairros pobres, como recordou Zambrano.

"Assim como aqui na Argentina a paixão das crianças é aprender a jogar futebol, na Venezuela, a partir da ideia do maestro Abreu, passou a ser a música clássica", lembrou ele. Para Adriana, é difícil não encontrar, na Venezuela, quem não conheça os instrumentos clássicos das orquestras, graças ao trabalho do maestro Abreu. "O que ele fez foi inovador e se perpetuou", disse.

Estima-se que o modelo do 'Sistema' tenha sido replicado em vários países. Ele resultou em nomes internacionais de prestígio, como o maestro Gustavo Dudamel, que atualmente dirige a Orquestra Filarmônica de Los Angeles. Procurado pela reportagem, ele não respondeu ao pedido de entrevista.

Além do braço de formação massiva, 'El Sistema' inclui também uma orquestra, a tradicional e prestigiosa Simón Bolívar, que já foi regida por Dudamel. Mas a situação e o prestígio se deterioraram nos últimos anos. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, 100 dos 120 nomes que integravam o corpo artístico em seu auge deixaram a Venezuela em busca de condições de vida melhores.

Durante a entrevista à BBC, Zambrano lembra com saudade da época que um músico venezuelano "não precisava mudar para a Europa para ter prestígio" e que "muitos músicos estrangeiros iam ao nosso país para estudar e se aperfeiçoar".

Sem dinheiro para fotocópias

O maestro Felipe Izcaray, do Sistema Nacional de Orquestras e Coros Juvenis e Infantis de Carora, no Estado venezuelano de Lara, que faz parte do Sistema, disse à BBC News Brasil que o salário de um músico pode ser de o equivalente a dez dólares (cerca de R$ 38).

A escassez leva a dificuldades básicas para desempenhar sua profissão, como tirar fotocópias de partituras, que muitas vezes não são possíveis por falta dos insumos ou de dinheiro. Pai de três músicos, que moram nos Estados Unidos, na Argentina e no Brasil, Izcaray, de 68 anos, fundou a orquestra de Salta, no norte argentino e é um dos grandes nomes de peso entre os maestros venezuelanos, segundo especialistas.

"Quando voltei para a Venezuela, há cerca de dez anos, era difícil imaginar que passaríamos a enfrentar dificuldades tão básicas", disse.

Há poucos dias, ele era o homenageado de uma das principais orquestras públicas em Caracas. "Apesar de ser o homenageado, eles sequer tinham o dinheiro para me mandar a passagem, o que antes teria ocorrido normalmente", disse.

Para além da música clássica

Ex-professor de violão na Berklee College of Music, nos Estados Unidos, o músico e compositor Aquiles Báez, de 54 anos, com vários discos, voltou para a Venezuela em 2011. Na época, a crise já dava sinais de gravidade. "A música e os músicos venezuelanos são o segredo melhor guardado da Venezuela. Eu quis voltar para trabalhar como gestor cultural. Por causa da crise, carecemos hoje de gestores. Fiz o caminho inverso (dos imigrantes)", disse.

Mas para ele, que costuma viajar para tocar em outros países, como o Brasil e os Estados Unidos, a música venezuelana vai além do 'El Sistema'. Báez criou uma plataforma, a Guataca, para congregar e promover músicos venezuelanos, fora do circuito da música clássica. "A Venezuela tem mais de 500 ritmos. É uma riqueza musical infinita e sem dúvida uma ferramenta também para o imigrante (venezuelano)", disse à BBC News Brasil. A plataforma conecta e reúne músicos venezuelanos no país, no Panamá, nos Estados Unidos e na Espanha.

Quando Báez contava à reportagem as dificuldades dos músicos que continuam na Venezuela, que inclui a necessidade de shows em residências porque os teatros nem sempre estão habilitados em tempos de crise, seu amigo Dylke Barrena, de 51 anos, chegou ao local. Ele também falou com a reportagem pelo telefone.

Professor de música de uma escola pública no interior do país, Barrena contou que ganha a vida também como taxista porque seu salário de professor foi esvaziado pela hiperinflação. Depende hoje da ajuda de amigos para a manutenção de seu instrumento. "Um conjunto de cordas pode custar mais que um salário. E não é fácil encontrá-las", disse. Músicos no país ganham em bolívar soberano, desvalorizados, e os insumos costumam ter preços dolarizados.

Derrocada econômica

País petroleiro que se acostumou a viver o pêndulo da riqueza na alta do petróleo e de tempos mais magros na baixa do preço do produto, a Venezuela enfrenta a combinação de inflação e desvalorização que tem ruído o poder de compra dos venezuelanos.

A economia local deverá registrar queda de 15% em 2018 e de 10% em 2019, segundo a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal). Ao mesmo tempo, a inflação no país é de longe a maior da América Latina, com uma média de 200% mensal entre agosto e outubro do ano passado, após medidas anunciadas por Maduro. Nos meses anteriores, de 2018, o índice superava os 100% por mês, mas disparou ainda mais, segundo economistas.

Na Venezuela, o salário mínimo de um professor da rede pública, por exemplo, é de cerca de 1.800 bolívares a 3 mil bolívares (entre cerca de R$ 104 e R$ 170), o que gerou protestos recentes.

Segundo a Acnur, três milhões de venezuelanos, entre refugiados e migrantes, deixaram o país principalmente para destinos da América Latina e Caribe (2,4 milhões) e o restante para outros continentes.

Ainda de acordo com o organismo da ONU, a Colômbia abriga o maior número de refugiados e migrantes da Venezuela, um total de mais de um milhão de pessoas. Peru, Chile e Argentina, além do Brasil, em menor medida, também registraram a chegada de venezuelanos nos últimos tempos. A Venezuela tem pouco mais de 30 milhões de habitantes.

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