Do pau de sebo ao baile elétrico: as origens do Carnaval de Salvador

Daniel Solyszko
Do UOL, em São Paulo

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    Trio Elétrico de Dodô e Osmar tocando em cima de caminhão durante micareta de Feira de Santana (BA), em 1952

    Trio Elétrico de Dodô e Osmar tocando em cima de caminhão durante micareta de Feira de Santana (BA), em 1952

Tema do Carnaval de Salvador este ano, a guitarra baiana possui uma história particular que se confunde com a própria história da celebração local. Pouca gente sabe, mas desde seus primórdios a folia baiana está profundamente ligada ao advento e a amplificação de instrumentos elétricos no Brasil. Em 1942, a dupla Adolfo Nascimento e Osmar Álvares Macêdo, que ficaria mais conhecida como Dodô e Osmar, acabaram criando um novo instrumento ao experimentar diferentes formas de ampliar o som.

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    O guitarrista Armandinho tocando uma réplica de pau elétrico durante apresentação

“Eles compravam o cavaquinho e o violão e quebravam a parte oca, ficavam só com o braço, e botavam um corpo feito de madeira de jacarandá e um captador”, conta o guitarrista Armandinho, filho de Osmar e remanescente mais velho do Trio Elétrico Armandinho, Dodô e Osmar. “Até que resolveram fazer isso usando sebo maciço”, conta. Surgia assim o pau elétrico, primeiro instrumento eletrificado usado no carnaval brasileiro.

O instrumento passou a ficar conhecido como cavaquinho elétrico durante a década de 50, até que por volta de 1978 ganhou o nome de guitarra baiana, após diversas modificações em seu modelo original feitas por Armandinho. “As inovações começaram em 64”, conta ele. “No final dos anos 60 pros 70 fui incorporando influências de rock. Nessa época eu ouvia muito Beatles, Led Zeppelin, Jimi Hendrix, Rolling Stones. Comecei a incorporar o uso de pedais, distorções, e usei uma quinta corda, que não havia antes”, diz ele, que também fez parte na década de 70 da banda pós-tropicalista A Cor Do Som.

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    Guitarra Baiana produzida em 2010 por Elifas Santana para comemorar os 60 Anos do Trio Elétrico

O maior fabricante de guitarras baianas no Brasil atualmente é Elifas Santana, que mora em Aracaju. Santana era fã do trio de Armandinho, e após alguns modelos de guitarra que havia fabricado começaram a ser usados em Salvador, foi chamado para trabalhar com o ídolo. “Eu estava na Barra curtindo o Carnaval e me chamaram para subir no trio. O Armandinho me mostrou a guitarra dele e disse que precisava de uma nova, e vi que poderia fazer uma bem melhor”, conta. “Quinze dias depois ele deu uma entrevista para a ‘Guitar Player’ citando meu nome, e aí todos começaram a querer meus modelos”, diz ele, já fabricou para nomes conhecidos como Luiz Caldas.

Ao longo de 16 anos fabricando exemplares de guitarra baiana, Santana viu o instrumento se popularizar cada vez mais. A influência se tornou tão forte que acabou sendo homenageada no carnaval desse ano. “A guitarra baiana antigamente não tinha identidade, não tinha o peso da guitarra elétrica”, conta ele sobre a evolução técnica do instrumento. “A que usamos hoje não é adaptada, a de Armandinho tem um pedal próprio embutido. Antes elas usavam captadores de outros modelos, era um problema. Os modelos tinha um campo harmônico pequeno, o som era estridente. Hoje ficou mais grave e robusto”, explica.

A origem dos trios

Se nos EUA a criação da guitarra elétrica é muito associada ao blues e o surgimento do rock´n´roll como uma expressão mais primitiva da música negra de então, a eletrificação dos instrumentos no Brasil está profundamente ligada aos ritmos que agitavam o Carnaval brasileiro de então, principalmente chorinho e o frevo que vinha de Pernambuco. “No começo a música era feita com instrumentos metais ou acústicos”, conta Aroldo Macêdo, irmão de Armandinho e também filho de Osmar. “O pau elétrico foi um divisor de águas, inventaram uma nova forma de tocar.”

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    Osmar, do Trio Elétrico de Dodô e Osmar, ao lado da Fobica, carro usado como o primeiro trio elétrico da história, em 1950

O primeiro trio elétrico brasileiro surgiu em 1950 em Salvador quando a dupla Dodô e Osmar resolveu ligar os instrumentos elétricos de uma orquestra de frevo na bateria de um Ford. “No primeiro ano a percussão ia a pé tocando, o resto ia num carro antigo, uma Fubica (apelido para o Ford)”, conta Aroldo. “Deu tão certo que passaram da Fubica para uma caminhonete no ano seguinte. No terceiro ano já usaram um caminhão, teve o patrocínio de uma marca de refrigerantes local. Como era um trio que tocava, toda vez que chegava o caminhão, todos falavam ‘lá vem o trio’”, explica.

Surgia assim o Trio Elétrico de Dodô e Osmar, primeiro em Salvador e no Brasil, que é mantido até hoje com o nome de Trio Armandinho, Dodô e Osmar por Armandinho e Aroldo. “Eles (Dodô e Osmar) eram modernistas, deram uma característica própria para o som. A música começou a ir para os salões, trazendo uma nova identidade, um novo som”, conta Aroldo. Outras mudanças no sentido de uma música mais regional e característica foram acontecendo aos poucos. “Em 74, ela passou introduzir novos elementos, como bateria e contrabaixo”, conta Armandinho.

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    Moraes Moreira e seu filho Davi Moraes recebendo um modelo de guitarra baiana de Elifas Santana

Algo quase impossível de se imaginar hoje em dia, a música era quase toda instrumental até o final da década de 70. “Desde o começo a música era instrumental. Por volta de 78, Morais Moreira começou a cantar com a gente de vez em quando. Em 79 o uso de cantores passou a ser definitivamente incorporado no Carnaval baiano”, diz ele, que completa, sem falsa modéstia, “tudo o que a gente fazia os outros trios passavam a fazer depois”.  

Sobre o modelo atual do Carnaval baiano, onde o antigo trio do seu pai, do qual ele se tornou empresário, ainda toca, Aroldo comenta: “Tudo o que tem uma dimensão muito grande acaba envolvendo empresários, e muito dinheiro. Vira uma indústria de fabricar artistas, é um modelo de faturamento. A gente sempre torce para ter qualidade, luta pela participação popular, por um movimento que também seja sociocultural”, conta ele, que é diplomático ao falar dos novos artistas baianos: “Nada me empolga muito, mas consigo ver o profissionalismo. Você tem uma geração boa de profissionais, como Ivete ou Claudia Leitte, mas tem também artistas que não estão na mídia”, diz ele, citando a banda instrumental de surf music Retrofoguetes como exemplo.

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